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5 de novembro de 2004

A aldeia americana e a guerra dos mundos  

Por Vicente Jorge Silva

Já aqui evoquei, embora a propósito de outro tema, esse filme inquietante que é "The Village". Considerado em geral - e pelo próprio realizador, M. Night Shyamanlan - como uma fábula inspirada pela América pós-11 de Setembro, só agora, porém, a situação metafórica de uma comunidade isolada do mundo exterior, no espaço e no tempo, ganha todo o seu significado, ao olharmos o mapa dos resultados eleitorais desta semana nos Estados Unidos.

Nas eleições mais participadas das últimas quatro décadas, emergiram dois mundos divididos e em conflito: um maioritário, que se barricou para defender as suas fronteiras (físicas e culturais) das ameaças exteriores e outro, minoritário, para quem essas ameaças são favorecidas pela cegueira do isolamento. Ora, numa democracia contemporânea, o paradoxo reside, precisamente, em que o mundo maioritário seja o espaço ancestral da aldeia e o mundo minoritário seja o espaço moderno da cidade. Na aldeia, predomina o fechamento, a desconfiança, o medo do desconhecido, a ilusão de uma superioridade que se alimenta da rejeição de quem é diferente de nós; na cidade, prevalece a abertura, a curiosidade, o risco da descoberta e a tolerância na relação com o Outro.

Evidentemente, esta divisão entre aldeia e cidade é uma divisão entre espaços imaginários e não propriamente físicos: há aldeias pacíficas e tolerantes (como é, à primeira vista, a de "The Village") e cidades conflituosas e violentas. Além disso, há a "aldeia global". Ora, tantos anos depois de McLuhan ter estabelecido o conceito de aldeia global a propósito da revolução dos meios de comunicação de massa - que derrubou as antigas fronteiras civilizacionais e culturais e provocou um fenómeno de aproximação planetária - torna-se irresistível desviar esse conceito e aplicá-lo a outra realidade. Essa realidade chama-se Estados Unidos.

Nenhum país inspirou tanto a ideia de aldeia global como os Estados Unidos, pois foi aí que teve origem a grande revolução tecnológica da comunicação sem fronteiras. E foi também em grande parte por causa disso que os EUA se foram convertendo na única superpotência global que hoje definitivamente são depois da queda do Muro de Berlim. A questão que se põe, depois do triunfo de Bush - por números que não deixam margem para qualquer dúvida, ao contrário do que aconteceu há quatro anos -, é a de saber se a América não se tornou ela própria uma contradição entre os dois termos do conceito de McLuhan. Ou seja: em que medida a aldeia enquanto espaço fechado sobre si mesmo não desmente - e torna infinitamente redutora - a dimensão global que deveria conter?
Global é, obviamente, a força da América enquanto superpotência económica, militar e cultural, mas o eixo dessa força não se centra já na abertura e proximidade com o mundo (a "aldeia global") mas na hostilidade e confronto face ao exterior (onde a "aldeia" e o "global" aparecem separados e em conflito). Não será por acaso, aliás, que a expressiva popularidade de Bush na América profunda - esse imenso mosaico de "villages" que se estende através do sul e do Midwest - contrasta de forma tão nítida com a sua enorme impopularidade e rejeição a nível... global (a maior já registada por um presidente americano), mesmo entre alguns dos aliados mais fieis dos Estados Unidos. Segundo uma sondagem do insuspeitíssimo "The Spectator", apenas 11 por cento dos eleitores britânicos e 13 por cento dos membros do Parlamento veriam com bons olhos uma vitória de Bush (sendo certo que 45 por cento do eleitorado que vota no Partido Conservador teria votado em Kerry e apenas 19 por cento no Presidente agora reeleito).

Mas os problemas de Bush com o mundo não terminam nas fronteiras dos Estados Unidos. Apesar da expressão confortável e indiscutível do seu triunfo interno, Bush tem também um problema com a outra América que, apesar de minoritária, se mobilizou contra ele com uma inédita intensidade. Sintomaticamente, quer o discurso de derrota de Kerry, quer o discurso de vitória de Bush - de uma contenção assinalável, aliás - reflectiram claramente o receio de uma divisão da América entre dois mundos antagónicos e irreconciliáveis. O risco de uma "Guerra dos Mundos" - para citar o título de outro filme, o próximo de Spielberg, adaptado do clássico de ficção científica de H. G. Wells ? não é um cenário exclusivo da relação dos Estados Unidos com a maior parte da população do planeta que votaria contra George W. Bush. É um cenário que opõe as duas Américas: a "aldeia" da América profunda (a "aldeia" de Bush) e a "cidade" da América cosmopolita de Nova Iorque, da Nova Inglaterra, do Illinois ou da Califórnia (a "cidade" anti-Bush).

O 11 de Setembro abalou o mito da invulnerabilidade das fronteiras americanas, mas só agora nos apercebemos até que ponto isso se reflectiu no inconsciente colectivo. Foi o 11 de Setembro que deu cobertura à "revolução conservadora" de Bush, esse regresso às raízes mais arcaicas da América puritana, exacerbando o divórcio entre a "aldeia" e a "cidade", entre a América que se vê a si mesma como fortaleza assediada e a América liberal e aberta ao exterior. Além disso, o ataque às torres gémeas permitiu a Bush explorar esse tremendo capital de propaganda que é o medo, sobretudo entre aqueles para quem a relação com o mundo exterior à sua "village" mental se baseia numa dicotomia elementar entre nós e os outros, entre o bem (que nós somos) e o mal (que os outros potencialmente representam).

É sabido que Bush não tinha programa político até Bin Laden lhe fornecer o pretexto, os neo-conservadores o guião e os fundamentalistas cristãos a bíblia de combate ao infiel (externo e interno). Em todo o caso, não deixa de ser imensamente perturbador que num país com mecanismos de regulação democrática tão vastos como a América tenha sido possível montar com perfeita impunidade - e a aprovação eleitoral que hoje se conhece ? uma farsa tão grosseira como a invasão e ocupação do Iraque, a partir de um tecido de mistificações ostensivamente fabricadas. O facto é que, depois do 11 de Setembro, o terrorismo colocou a América em estado de excepção virtual, com as liberdades condicionadas pela chantagem do discurso patriótico a pretexto da guerra (e onde o Patriot Act tornou possível as violações dos direitos individuais consagrados na magna carta americana). A isso se submeteram as instituições políticas, o contrapoder dos media e a maioria dos cidadãos. A cruzada evangelizadora propagou-se no exterior e no interior (contra o aborto ou os ?gays?) enquanto as corporações de interesses, a coberto da guerra ao terrorismo, montavam no Iraque um terreno propício à rapinagem económica. O escândalo da baixa de impostos para os mais ricos num país em guerra, ao mesmo tempo que o défice orçamental atingia recordes inimagináveis, a clamorosa incompetência e os desastres sucessivos da ocupação do Iraque, os mil e um episódios que, normalmente, teriam abalado a credibilidade de qualquer governo, nada disso roubou a Bush o privilégio de uma vitória histórica, sublinhada pela maioria republicana nas duas câmaras do Congresso.

Reeleito Bush, a "aldeia" americana confronta-se hoje, porém, com a "guerra dos mundos": aquela que ocorre dentro das duas Américas e a que confronta os Estados Unidos com o exterior. Como desenredar tantas teias e sair de tantos buracos que se foram cavando durante os últimos quatro anos? Dir-se-á que o Presidente não pode ignorar o terreno minado da herança que deixou a si mesmo e, aprendida a lição, será obrigado a ensaiar novos caminhos. Por causa disso, há quem preveja um próximo mandato mais pragmático e menos ideológico do que o primeiro: o apelo conjugado de Kerry e Bush à reconciliação americana seria um primeiro sinal nessa direcção. Mas com a legitimidade reforçada que Bush obteve na eleição de terça-feira, a hipótese mais provável e consentânea com o perfil da personagem não será a fuga em frente? Nesse caso, espera-nos mesmo a guerra dos mundos - e já não em sentido figurado.

(Diário Económico, 6ª feira, 5 de Novembro de 2004)

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