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1 de dezembro de 2004

O Partido Búnquer 

Por Vital Moreira

Uma das novas palavras de ordem entoadas no congresso do PCP, realizado no fim-de-semana passado, foi "Partido Comunista / marxista-leninista". O mote foi dado pelo antigo secretário-geral, Álvaro Cunhal, cuja saudação ao congresso terminava com esse grito de guerra da ortodoxia ideológica do partido, levantando um aplauso entusiástico de todo o auditório.

E de facto nada poderia resumir tão fielmente o inequívoco endurecimento de um partido em retracção sobre si mesmo e refém da sua própria história. Ao sublinhar a sua "natureza de classe" (obviamente como "partido do proletariado"), ao afastar os poucos críticos que restavam, recusando qualquer abertura para a divergência interna, ao insistir enfaticamente no "centralismo democrático" e na recusa das comuns regras de democracia partidária, ao preferir funcionários do aparelho aos deputados e autarcas no comité central (CC), ao colocar condições que inviabilizam praticamente uma solução de governo com o PS, o PCP optou definitivamente pela imutabilidade da sua herança doutrinária e pelo caminho sem regresso do declínio em que vai definhando. O novo secretário-geral corresponde inteiramente a esse perfil do PCP, se possível ainda mais igual a si mesmo.

Dos mil e muitos delegados ao congresso só dois tiveram a coragem ou tiveram vaga para falar "fora de tom" no alinhamento oficialmente estabelecido. O primeiro teve escassos aplausos e nutridas vaias, sendo depois agressivamente invectivado pessoalmente no exterior, como relata a imprensa; o segundo encontrou a mesma hostilidade sectária, embora menos estridente. Como sempre, quem diverge publicamente da orientação oficialmente definida é um "dissidente" ou "fraccionista", que deve ser rapidamente expurgado ou pessoalmente desqualificado. No final, num universo de delegados cuidadosamente seleccionado, poucas dezenas deles votaram contra o novo comité central proposto pelo CC cessante. Sem o voto secreto, ainda seriam menos.

Os primeiros derrotados do congresso foram portanto aos autodesignados "renovadores", especialmente os quais ainda insistem em se considerar membros do partido (porque não saíram nem foram formalmente expulsos), mas que obviamente os "verdadeiros" militantes já não consideram como tais. Só pode relevar da ingenuidade ou do cinismo que ainda haja quem julgue haver lugar doravante para qualquer renovação ou reforma do PCP. Para os que se não tinham dado conta, terminou definitivamente a era das contestações colectivas iniciada no final dos anos 80, com algumas réplicas posteriores, cada vez mais repetitivas e cada vez mais irrelevantes.

Particularmente notória foi a ênfase na defesa do "centralismo democrático" - peça essencial da cultura marxista-leninista - e a desafiadora recusa da lei dos partidos políticos quanto às regras de democracia interna. Sob protesto adoptou-se o voto secreto na eleição do comité central, mas já não foi assim nas eleições dos delegados, dos órgãos executivos, nem do novo líder. Como manda a cartilha, não houve listas alternativas, mas sim uma única lista apresentada a sufrágio pela própria direcção cessante. No modelo de organização do PCP não existe direito de candidatura, nem as eleições servem para escolher entre candidaturas alternativas, apresentadas pelos delegados, mas sim em aprovar a lista única apresentada pela própria direcção. As eleições (e o mesmo sucede com as votações de resoluções ou outras tomadas de posição) não passam de procedimentos de ratificação de escolhas previamente efectuadas pela direcção central, a quem cabe também aceitar ou rejeitar livremente os "enriquecimentos" (como se diz no jargão partidário) eventualmente vindos de baixo.

Entre os perdedores estão portanto também os que acreditaram na possibilidade de democratizar o PCP por imposição legal de regras democráticas. O comando oligárquico e a cooptação do grupo dirigente, como "vanguarda" autodesignada, pertencem à natureza intrínseca do genuíno "centralismo democrático". A proibição de exteriorizar divergências ou críticas fora dos organismos partidários facilita a sua filtragem e silenciamento interno e torna impossível a criação de correntes de opinião alternativas a nível do partido. Descontado um improvável golpe de estado palaciano, a conjugação destes mecanismos torna inexpugnável e invulnerável o grupo dirigente, que se vai auto-reproduzindo.

A terceira consequência deste visível endurecimento comunista tem a ver com a acrescida dificuldade, se não pura inviabilidade, em equacionar soluções governativas com o PCP. Ao insistir sectariamente na condenação global das "políticas de direita" do PS (omitindo a referência a algumas de esquerda), ao recusar liminarmente qualquer reforma dos sistemas de saúde e de segurança social - mesmo que sem elas ambos caminhem para o desastre -, ao vilipendiar toda a ideia de disciplina financeira à luz do Pacto de Estabilidade e Crescimento da UE e ao partir em guerra contra a Constituição europeia (tal como sempre rejeitou a integração europeia, desde o início), o PCP não esqueceu de listar e sublinhar nenhum dos tópicos que tornam incompatível a sua presença num governo de unidade ou coligação à esquerda. A profunda divergência com o PS em matéria europeia é porventura aquela que levanta mais escolhos a um entendimento de incidência governamental. Se, à direita, a actual coligação de governo reclamou o apagamento das posições eurocépticas do CDS de Portas, à esquerda não se vislumbra como é que o PCP poderia fazer conviver o seu obstinado e radical antieuropeísmo com o apoio a um governo pró-europeu, como será sempre um governo socialista.

Entre os vencidos do congresso do PCP estão portanto também os que à esquerda, inclusive no PS, têm lutado contra a exclusão à partida de alianças de governo com os comunistas. As ideias de "maioria de esquerda" como solução de governo passaram a fazer ainda menos sentido do que antes, a não ser como retórica de propaganda eleitoral do PCP. Doravante fica mais claro que ele prefere ficar de fora e que um governo à esquerda não pode contar com ele para fazer maioria.

Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)

1. Numa inesperada erupção de maniqueísmo, J. Pacheco Pereira veio defender (PÚBLICO de quinta-feira) que quem não percebe a pergunta do referendo europeu (como se toda a gente tivesse de a perceber sem a informação que só o debate do referendo pode proporcionar...) deve votar contra o novo tratado constitucional. Mas por que é que quem não tem ou não quer ter posição há-de deixar-se arregimentar pelo "não" (ou pelo "sim")? Há alguma racionalidade democrática nisso? Tal como as eleições, os referendos servem para apurar a posição de quem a tem e a quer manifestar. A abstenção e o voto em branco também têm relevância política (e, no caso da abstenção, também relevância jurídica).

2. Em vez de reconhecer o seu grave erro quando acusou a Constituição europeia de ignorar os direitos dos cidadãos, António Barreto vem argumentar (PÚBLICO de domingo) que a minha demonstração em contrário é puramente "jurídica" (como se houvesse alguma coisa mais "política" do que limitar o poder através de uma carta de direitos e garantias dos cidadãos!...). Típica desconversa!

3. Foi em nome da estabilidade governativa (lembram-se?) que Sampaio justificou a nomeação do actual primeiro-ministro, agora gravemente acusado de deslealdade pessoal e política por um dos seus mais dilectos ministros, que sai com estrondo somente quatro dias depois de uma remodelação governamental. Neste contexto de desagregação do Governo e de manifesta instabilidade pessoal do próprio primeiro-ministro, a simples menção da palavra "estabilidade" (que rima com credibilidade e seriedade...) arrisca-se a ser uma piada de mau gosto! E agora, Jorge Sampaio?!

(Público, Terça-feira, 30 de Novembro de 2004)

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