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28 de junho de 2005

Textos recuperados: "As chamas do Inferno" 

por Vital Moreira

Que Portugal é um País cada vez combustível, isso vamos sabendo de Verão para Verão, à medida que a florestação artificial do País se vai inexoravelmente expandido e que as condições climatéricas se vão tornando mais propícias aos fogos florestais.
Todos os anos se repete a mesma ladainha sobre culpas e responsabilidades, com os críticos a denunciar a falta de meios e a descoordenação no combate aos fogos e com os sucessivos governos a protestar que nunca se gastou tanto dinheiro nesse fim. O que fica normalmente por dizer é que, sem mudanças radicais na política florestal, por mais meios que estejam disponíveis, trata-se sempre e só de paliativos, pelo que todos os anos extensas matas do País serão implacavelmente reduzidas a cinzas.
Sucede que nos habituámos a pensar que se trata de uma fatalidade da natureza e/ou da malvadez dos homens. Alternamos em condenar a canícula do Verão ou o desmazelo dos proprietários florestais (a começar pelo Estado) e a mão criminosa dos incendiários. Não nos damos conta de que a primeira é um dado que não podemos revogar e que os segundos podem ser limitados por adequada prevenção e repressão penal, mas que também não podem ser eliminados.
Como não se cansam de dizer vozes avisadas, os fogos florestais são uma consequência inevitável do tipo de florestação que adoptámos e do Verão quente e seco que temos. Trata-se de uma combinação explosiva, cujas consequências podem ser atenuadas à custa de fortes gastos na prevenção e nos meios de combate aos fogos mas que não podem ser afastadas. Ora se, como nos ensinam os que sabem, as tendências climáticas são no sentido do agravamento, designadamente com o aumento do número de dias com temperaturas superiores a 35 graus, então a única esperança de mudança da situação só pode assentar numa modificação radical do povoamento florestal dominante.
A nossa actual cobertura florestal, caracterizada por extensas manchas contínuas de pinhal e de eucaliptal, especialmente nas serranias do Centro do País, não se limita a fazer da nossa paisagem uma monótona sucessão de tons de verde baço, triste e feio, a contrastar com a beleza não somente das zonas de pomar, vinhedo ou seara, mas também com as matas de carvalhos, castanheiros ou sobreiros e outras espécies nativas, que ainda vão subsistindo por esse País fora. Não é por acaso também que os incêndios florestais se concentram especialmente naquelas grandes manchas contínuas de pinheiro bravo e de eucalipto, que ocupam grandes áreas territoriais entre o Douro e o Tejo.
Ora essa paisagem florestal não é uma criação espontânea da natureza, mas sim o produto bem humano de uma política de "fomento florestal" com mais de um século, que tem atravessado, com notável continuidade, sucessivos regimes políticos e inúmeros governos de todas as orientações. Sistematizada pela primeira vez no chamado "regime florestal" de 1901-1903, ainda no final da monarquia, a política florestal visava promover o revestimento arbóreo dos terrenos improdutivos, com o objectivo de aumentar a riqueza nacional, de beneficiar o clima, de fixar solos nas encostas e montanhas e de regularizar os cursos de água.
A Lei do Fomento Florestal de 1938 foi o instrumento fundamental do Estado Novo nesta área, implementando sistematicamente a arborização dos baldios e das serranias interiores a norte do rio Tejo, incluindo o desapossamento forçado de extensos terrenos comunitários e, mesmo, particulares, não sem a resistência das populações, expropriadas das suas pastagens e matas de logradouro comum. O romance de Aquilino Ribeiro, "Quando os Lobos Uivam", de 1958 (curiosamente publicado no mesmo ano do sobressalto da campanha presidencial de Humberto Delegado), ficou para a história como uma pungente expressão da resistência à violência da Ditadura. À política florestal do Estado Novo se deve, entre outras, a paisagem típica da zona do chamado "Pinhal Interior", bem como a desertificação humana de zonas como a Serra da Lousã, com a expulsão das comunidades pastoris que nelas habitavam.
Com a introdução da indústria da celulose entre nós há meio século, em expansão contínua desde então, ela passou a ser um dos principais factores da florestação, pela propagação do pinheiro bravo e, crescentemente, do eucalipto. As empresas de celulose são hoje as principais responsáveis pela avassaladora eucaliptização do País, quer em implantações florestais próprias ? num curioso fenómeno de integração vertical da "fileira" industrial ?, quer por via de incentivo aos produtores particulares. Os interesses dessa indústria passaram a ser dominantes na determinação da política florestal nacional, conjugando os interesses de proprietários florestais, de madeireiros, da indústria e do Governo ("capturando" especialmente os ministérios da Indústria e da Agricultura), sem outra oposição além da frustre voz de algumas associações ambientalistas.
Num País com escassos recursos energéticos e poucos solos com aptidões agrícolas, a produção florestal chegou a ser elevada ao estatuto mítico de "petróleo verde" por algum ministro mais dado a metáforas empolgantes O "milagre" da florestação cobriu de pinheiros e eucaliptos as encostas das serranias do interior, onde antes vingava somente uma vegetação rasteira e pastavam alguns rebanhos de ovelhas e cabras, deu rendimento inesperado, seguro e sem encargos a proprietários fundiários que se limitam a "arrendar" os seus terrenos às empresas de celulose ou aos seus agentes, e fez do nosso País um grande produtor de pasta de papel, um verdadeiro prodígio tendo em conta a sua situação geográfica e a sua condição ecológica e climática.
Portugal transformou-se assim num país florestal exótico, coberto de espécies alienígenas, especialmente do omnipresente eucalipto, que fazem parecer certas zonas do País uma espécie de província da Austrália, onde nem sequer falta a praga das acácias mimosas a invadir encostas e mesmo várzeas ribeirinhas. Tornámo-nos reféns da indústria da celulose e dos múltiplos interesses que são solidários dela. E pagamos bem caro essa servidão, não somente quanto aos custos ambientais das próprias fábricas, mas também quanto aos impactos negativos na paisagem silvícola, na ocupação do solo, na desertificação de extensos territórios, na pressão predadora do eucaliptal sobre os recursos hídricos e, por último, nos custos e nos sacrifícios dos fogos florestais, que são facilitados e fomentados pelo regime florestal predominante.
Bem podemos denunciar o desmazelo dos proprietários e utilizadores das matas ou punir com mão forte os poucos incendiários que se conseguem apanhar; bem podemos atirar pazadas de dinheiro sobre as chamas, para pagar mais e melhores meios de combate; bem podemos culpar todos os governos por incúria ou incumprimento de promessas. Tudo isso será essencialmente em vão enquanto continuarmos a acumular massas compactas e contínuas de material lenhoso altamente inflamável em zonas inacessíveis e enquanto não se quebrar o círculo vicioso do (des)ordenamento florestal vigente. É essa política que as chamas estivais condenam, como se o seu destino não fosse outro senão o ígneo castigo dos infernos. Como quase sempre sucede, porém, os beneficiários são poucos, os custos são da colectividade e as vítimas são os inocentes. Neste ano já lá vão nove vidas.

(Público, 3ª feira, 5 de Agosto de 2003)

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