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5 de julho de 2005

O irmão mais velho 

Vou escrever este texto de um só fôlego, relê-lo uma única vez e fechar a página. Estou para escrever sobre o homem do título há muito tempo mas nunca encontrei o momento certo, o local oportuno ou a forma apropriada. Creio que agora e aqui é o momento.
Tenho um irmão de sangue, mais novo, e tenho apreciado o papel de irmão mais velho toda a minha vida. Tanto quanto sinto a falta de um. Hoje, numa crónica mais para ele e para as pessoas desta casa, quero falar-vos do Luís Osório.

Há pouco mais de um ano atrás, o Luís ligava-me para jantar. Queria a minha opinião sobre um convite que recebera. Lá fomos e ele contou-me da possibilidade de dirigir A Capital, tornando-se o mais jovem director de um diário nacional e ? bem mais importante do que isso ? realizando um dos seus maiores sonhos. O que achava? Disse-lhe e não me arrependo: que ele só poderia vencer. Havia dois campos de jogo, a relação com a administração espanhola e o impacto do seu trabalho na redacção e na imprensa portuguesa. E, nesse segundo campo, a vitória era o único caminho possível. Sabia que o Luís só poderia ganhar essa batalha e, passado um ano, assim aconteceu. A Capital recuperou a auto-estima, ganhou prestígio, municiou-se de uma equipa diversificada de colaboradores, inovou no grafismo, conquistou leitores jovens, estancou a quebra nas vendas, realinhou-se ideologicamente, lutou por causas, tornou-se influente nos meios do poder.
Como sabia que o Luís só poderia ganhar? Por conhecê-lo tão bem. Comecei a trabalhar com ele, oficialmente, no dia em que terminei o curso de Direito. Cheguei à Mínima Ideia, a produtora de que o Luís era sócio e director, com a gravata na mão, feliz da vida. Essa gravata patética que nos ?obrigam? a vestir para as orais de Direito na Clássica de Lisboa sob pena de nos acusarem de não respeitar a instituição e os seus doutos sábios. A gravata na qual nunca consegui aprender a dar o nó, nem o mais básico de todos, apesar dos múltiplos esforços do meu pai. O Alexandre, meu irmão mais novo, é que me safava ? com elegantes nós de vários estilos ? executados na véspera das orais que tive de fazer. Cheguei à Mínima Ideia e disse: ?Já está! Acabei!?. O Osório pergunta-me então, com o ar mais natural do mundo, se teria de passar a tratar-me por doutor. E eu, estúpido, levando-o a sério, respondo ?Claro que não?. Foi a primeira vez que registei a sua gargalhada capaz de demolir paredes. Desde então aprendi a lidar com a ironia e o sarcasmo do Luís.
Trabalhámos dois anos e meio juntos e foi o melhor período da minha vida. A equipa era pequena, muito jovem, e o Luís confiou em pessoas absolutamente inexperientes em televisão as mais variadas funções e responsabilidades. Vejo esse tempo como um curso intensivo com as mais diversas pós-graduações em comunicação: entrevistámos, editámos, escrevemos, interpretámos, realizámos. Fizemos programas sempre a partir de ideias originais e nunca adaptámos um formato estrangeiro sequer.
Ficámos amigos mas, curiosamente, não tão próximos como hoje. Isso só aconteceu verdadeiramente quando abandonei a Mínima Ideia. Lembro-me do dia em que, após muito adiar o momento, decidi contar ao Luís que recebera um convite para as Produções Fictícias. Como gostamos muito de metáforas futebolísticas, disse-lhe que estava no Benfica e só admitiria trocar o meu clube do coração pelo Real Madrid. Estava constrangido, atrapalhado, não sabia como lhe dizer. Ele descansou-me em dez segundos: deu a mesma gargalhada forte de sempre, uma palmada nas costas, meia dúzia de palavrões amigáveis e disse-me, tens de ir, pá, como é óbvio. Vai ser bom para ti.
Se ainda me restassem dúvidas, desapareceram nesse dia os últimos comentários que a minha memória ainda guardava de três ou quatro medíocres que tinham tentado, no início da aventura na Mínima Ideia, envenenar a impressão que tínhamos do Luís - eu e aquele que veio a tornar-se no seu grupo mais íntimo. Foram nos dois anos seguintes, em que já não existia a relação patrão-empregado, que a nossa amizade se tornou total. O Luís acabou por também deixar a Mínima Ideia, realizou um documentário, escreveu livros, encenou uma peça de teatro, mas mantivemo-nos próximos. Chegou mesmo a passar períodos difíceis, de desânimo e dúvida, e nunca os revelou. Correndo o risco de ser lamechas (mas é para isso mesmo que tenho esta página, para escrever o que quiser), o Luís tornou-se, de facto e para sempre, no meu irmão mais velho. E os irmãos mais velhos fazem por esconder dos outros as suas tristezas. Dão o exemplo de força e os conselhos mais acertados. Enfrentam as tempestades com um sorriso tranquilo.
Aprendi com o meu irmão mais velho a escutar a minha própria opinião antes de todas as outras, a não me deixar influenciar, a relativizar sempre os sucessos e os fracassos, a rir de todas as contrariedades, a não tomar nada por garantido, a respeitar os autodidactas, a ser independente, aprendi (e ainda procuro) a encontrar um caminho no meio da dispersão.
Agora que o Luís e o nosso grande Rogério, seu fiel escudeiro, terminam o seu ciclo n?A Capital, custa-me passar pelo seu gabinete e vê-lo vazio. Custa-me que a redacção ainda não tenha recuperado o sorriso que recuperou neste último ano, e custa-me sobretudo o meu próprio egoísmo. Não ter aprendido ainda que os caminhos dos irmãos nem sempre levam à mesma cidade ou, melhor ainda, que o destino final pode ser o mesmo mas existem inúmeros caminhos para lá chegar. O Luís ensinou-me isso mesmo mas ainda sou demasiado egoísta para aprender em toda a plenitude a noção de que, por vezes, não terei o meu irmão mais velho lado a lado na mesma caminhada.
Alguns dos seus mais próximos ficam por cá, com prazer, para continuar o trabalho na equipa fantástica deste diário. O nosso irmão mais velho sai com a consciência tranquila, sem nada, como já fez noutras ocasiões da sua vida. Sem convites, independente e livre como sempre foi.

Para ele, meu irmão e mestre, deixo uma imagem. Há muito que te vejo como um Dom Quixote ao qual deram um grande sentido de humor. Só te quero dizer que se, por acaso, os moinhos forem mesmo de vento, chama-me outra vez para o teu lado. Melhor lutar contra uma ilusão do que perder de vez a capacidade de nos iludirmos. Também aprendi isso contigo. E estou convencido de que é pelas (e para as) ilusões que nos mantemos activos e confiantes. Com o riso sempre pronto apesar da morte espreitar atrás de cada esquina. E se, no futuro, não ficar marca nenhuma, se a cidade à qual estamos destinados não passar de um amontoado de destroços - que se lixe, ao menos teremos a certeza de que nos divertimos bastante no caminho para lá.

Luís Filipe Borges, in A Capital

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