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5 de julho de 2005

A Santíssima Trindade do Extraterrestre 

Aviso prévio: não percebo nada de música. E calhou-me logo falar de um disco, a mim, que não respeito críticos portugueses absolutamente nenhuns excepto alguns bravos críticos musicais. Publicidade: já agora, se querem ler excelentes textos e recensões sobre discos, visitem o blogue www.quasefamosos.blogspot.com.
Dito isto, recuemos ao tempo em que os Delfins ainda não tinham conquistado o direito a ser apedrejados à vista e o Miguel Ângelo ainda não era um beto com a mania que é londrino mas apenas um beto que aspirava a ser londrino. Nesses tempos de paz e harmonia no mundo, os Delfins deram-me a conhecer António Variações. Nasci em 77 portanto, se pensarmos aquilo que Variações poderia representar para uma criança, enfim, só me vem à cabeça a imagem do Papão. De modo que é mais tarde, e por voz e instrumentos alheios, que estabeleço contacto com a obra do grande artista:
?Tu estás livre e eu estou livre / e há uma noite p?ra passar / porque não vamos unir-nos / porque não vamos ficar / na aventura dos sentidos?? ? primeiros versos da Canção do Engate. Conseguem imaginar o que representariam versos como estes numa canção com este título, num país cuja democracia mal tinha acabado se sair da incubadora? Numa frase, Variações fez à pop portuguesa o mesmo que os Capitães de Abril fizeram ao país: uma revolução.
Agora, 20 anos depois da sua morte, chega-nos do Além o disco nacional do ano. 20 anos depois, Variações continua a soar único, ousado, novo, incomparável. A poesia está na rua. A revolução não morreu. Parece fácil escrever isto? Fácil é constatar que os LOTO não passam de New Order requentado, que os FONZIE são fotocópia a preto e branco dos Greenday, os TORANJA não passam de Jorge Palma de 3ª categoria, GOMO é muita parra mas pouca uva e os próprios THE GIFT parecem dever demais à cena de Bristol e afins.
As letras de Variações continuam a surpreender pelo seu desassombro e têm tanta verdade nelas contida que, à primeira audição, percebemos estar perante uma mão cheia de clássicos. De resto, o disco é um caso de amor. A escolha de Manuela Azevedo, Camané e David Fonseca para darem voz a um verdadeiro ?Variações Reloaded? é magistral e, simultaneamente, humilde. Só três vozes tão distintas, a pop melódica de Manuela, o humanismo sofrido do fadista e o português roqueiro de David (tão surpreendemente diverso do seu angustiado inglês), poderiam aproximar-se do génio total do homem que vivia e compunha ?entre Braga e Nova Iorque?.
Neste belíssimo álbum, Variações e os Humanos dão-nos mais que apenas (muito) boa música. Dão-nos hinos. Canta-se com uma clareza e coração aberto que não fazem falta somente à música nacional ? mas também ao cinema e à literatura, para não ir mais longe. É a vida de António Variações que está ali: o sexo, a insatisfação, a família, o envelhecimento, a doença, o desejo, a morte. Mas sempre, dir-se-ia que da primeira à última faixa, com um sentimento estranhamente raro para nós, soturnos portugueses, a esperança em vez da saudade, a alegria em vez das lágrimas.
Cantemos todos, a partir de agora, em casa, no local de trabalho, na rua, no estrangeiro, sozinhos ou acompanhados, onde quer que estejamos: ?Vou viver / até quando eu não sei / que me importa o que serei / quero é viver / Amanhã / espero sempre um amanhã / e acredito que será / mais um prazer?.

Luís Filipe Borges, in A Capital

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