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21 de agosto de 2005

Etiópia: o génio fora da garrafa 

Por Ana Gomes

Ouvimos falar da Etiópia do Prestes João, no século XV, logo na escola primária. E depois graças a devastadoras imagens na TV e «We are the world» de Bob Geldorf, dos milhões de etíopes dizimados pela fome num dos países mais pobres do mundo. Sabemos também que a capital, Addis Ababa, é sede da União Africana. Mas poucos de nós realizarão que a Etiópia é um dos países mais antigos do mundo, uma civilização que remonta a dois mil anos antes de Cristo, centrada no reino de Axum, de onde era originária a lendária Rainha do Sabá.
Muito pouco se sabe em Portugal da Etiópia de hoje ? uma área correspondente à da França, Espanha e Itália juntas, com 72 milhões de habitantes, quase tantos cristãos ortodoxos como muçulmanos, coexistindo exemplarmente e assumindo a forte influência judaica (segundo a lenda, o primeiro rei etíope era filho do Rei Salomão e da Rainha do Sabá). Um país de gente lindissima, homens e mulheres com uma dignidade impressionante, mesmo os 89% que vivem abaixo do limiar de pobreza, com menos de 2 dólares por dia e que trabalham a terra com arados iguais aos antepassados de há 3.000 anos. Gente de diversas etnias, falando várias línguas e com um alfabeto próprio. Um país situado na África Oriental, com uma importância estratégica acentuada pela proximidade com zonas incubadoras/exportadoras de terrorismo e pelo impacto regional das disputas de fronteiras com vizinhos incaucionáveis (um Estado falhado na Somália e um regime opressor e agressivo na antiga provincia etíope que é hoje a Eritreia independente). Um país semeado de monumentos e vestigios históricos e antropológicos unicos - das igrejas de Lalibela, ao castelo «português» de Gondar, aos restos de «Lucy», o mais antigo esqueleto humano. Um país onde nasce o rio Nilo, de paisagens de montanha fabulosas, com uma capital limpissima e de clima ameno a 2.500 metros de altitude, e planaltos verdejantes a perder de vista e a cair em ravina (o grande «rift» de África atravessa a Etiópia diagonalmente) sobre o deserto do Afar, que caravanas de camelos atravessam imemorialmente.
E porque pouco sabemos, não nos incomoda que as fomes cíclicas - que ameaçam neste momento 9 milhões de camponeses etíopes, sobretudo produtores de café (de Kafa, no sul da Etiópia, veio a planta hoje cultivada em vários outros continentes) - ocorram em resultado do processo desregulado de globalização: porque os preços do café cairam brutalmente, manipulados pelo cartel de multinacionais que domina a distribuição mundial; e porque na Etiópia não há estradas, nem circuitos comerciais, nem meios para encaminhar em tempo útil cereais produzidos em zonas do país onde até há, paradoxalmente, sobreprodução.
Mas o processo eleitoral que o país acaba de viver é mais uma razão para que nos interessemos pelos cidadãos da Etiópia, que nos ultimos 30 anos passaram por tudo: do regime feudal do Imperador Haile Selassie, para o «Terror Vermelho» de Mengistu, de que foram libertados em 1991 pelos guerrilheiro do Tigray (norte do país), cujo partido desde então domina o Governo, sob a liderança «marxista-leninista-capitalista» do inteligente Primeiro Ministro Meles, abençoado por americanos, europeus e ...chineses (que já farejam o petróleo na Gambella, a oeste, na fronteira com o Sudão).
Sentindo os ventos que sopram e antecipando ganhos de legitimidade, de governabilidade e de assistência internacional, Meles teve a coragem de apostar num processo eleitoral segundo parâmetros democráticos, convidando observadores internacionais até, apesar de o seu Partido cultivar um desprezo visceral sobre toda a oposição a pretexto de que representa os regimes reaccionários depostos. A oposição, apesar de fragmentada e inexperiente, tem apoio financeiro das comunidades etíopes no exterior e capitaliza no ressentimento contra quem está no poder há 14 anos e tende a exercê-lo com prepotência, nas zonas rurais em particular. O partido governamental terá, como todos os analistas, antecipado que as perdas da coligação governamental nas zonas urbanas seriam compensadas pela manutenção do controlo das zonas rurais, representando 80% da população.
E as mulheres e os homens da Etiópia, a principio desconfiados de que tudo não passaria de encenação, como em 1995 e 2000 em que a oposição boicotara as eleições, decidiram tomar todos à letra. E foram ganhando confiança em ostentar preferências políticas ? viu-se nas duas extraordinárias manifestações que pacificamente reuniram entre si, em dias seguidos, mais de dois milhões de manifestantes em Addis, a da oposição duplicando a do partido governamental.Viu-se no generalizado acenar do símbolo que identificava a principal coligação da oposição. Os ensaios de democracia dão nisto: o génio sai para fora da garrafa.
E para isso, para a crescente confiança popular no processo contribuiu a Missão de Observação Eleitoral da UE, estabelecida no país desde meados de Março. A 15 de Maio, dia das eleições, foi essa diferença que tantos etíopes, ao longo das intermináveis filas de voto em Addis Ababa e por todo o país, agradeceram aos observadores europeus, aplaudindo-os.
Os etíopes acabam de dar a África e ao Mundo uma demonstração extraordinária de fé na democracia. Acorreram massivamente às urnas e esperaram pacientemente, em milhares de casos mais de dez horas, para votar. Nas primeiras eleições no país em que houve real competição e em que sentiram que poderiam com o seu voto determinar a governação do seu país.
Coube-me o privilégio de chefiar a Missão de Observação Eleitoral da União Europeia na Etiópia. À hora a que escrevo o trabalho não está completo. Estamos na fase crítica da contagem dos resultados eleitorais, que deverão ser logo afixados à porta de cada mesa de voto. Dentro de dias será possível ter ideia dos resultados finais. Depois seguir-se-á o processo moroso de agregação oficial.
A tensão é palpável, mas domina a extraordinária contenção dos etíopes. A afluência massiva tem um significado político. O que está em causa poderá ser a diferença entre a paz e a guerra, a ingovernabilidade e o desenvolvimento, a aprendizagem ou a supressão da democracia.
Em todo o caso, não será mais possível re-enfiar o génio dentro da garrafa. Mas angustia-me, à hora que escrevo, não saber se as altissimas e legítimas expectativas dos etíopes serão concretizadas.

Ana Gomes
16.5.05
(Publicado a 20.5.05 no «Courrier Internacional»)

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