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8 de setembro de 2005

A rentrée 

por Vital Moreira

Com meio ano de mandato decorrido, onde nem tudo resultou pelo melhor, o modo como o Governo e o partido governamental conduzirem o arranque do novo ano político que agora se inicia é decisivo para o resto da legislatura e para o êxito, ou não, do Governo de José Sócrates.
Há coisas que não correram bem ao Governo, umas por culpa própria, outras por factores alheios. O receio de prejudicar a vitória eleitoral pactuou com algum "branqueamento" da situação financeira e económica do país antes das eleições e com a falta da previsão de medidas de austeridade que depois vieram a tornar-se inevitáveis (como a subida da carga fiscal). A saída prematura do ministro das Finanças - um caso evidente de fragilidade política - abalou transitoriamente a confiança na firmeza da política de disciplina das finanças públicas. A nomeação de um ou outro dirigente partidário sem credenciais bastantes para cargos de administração de empresas públicas (em que sobressai o lamentável caso da CGD) exaltou a susceptibilidade existente contra a aplicação do regime de spoil system ao sector empresarial do Estado. O anúncio de grandes investimentos em infra-estruturas de transportes públicos, desacompanhado dos estudos que as justificam e do esclarecimento sobre os seus custos e benefícios, suscitou uma desnecessária controvérsia. A isso somou-se a natural resistência dos sectores prejudicados pela perda de privilégios e regalias no âmbito da reforma da função pública, em geral, e dos regimes especiais, em especial.
Mas as circunstâncias envolventes da actividade governativa, que não dependem do Governo, foram tudo menos favoráveis. As previsões sobre o crescimento da economia europeia, de que a economia nacional é altamente dependente, continuaram em baixa. O preço do petróleo prosseguiu a sua subida para o céu, acentuando os factores recessivos da economia e provocando uma crescente sobrecarga da factura energética na balança comercial, aumento do preço de bens e serviços, entre os quais os transportes e a electricidade, etc. A prolongada seca aniquilou boa parte da produção agrícola, com os consequentes reflexos na subida dos preços e no aumento das importações. E até a longa e devastadora época dos fogos florestais consumiu grande dose de energia governamental e degradou ainda mais o clima de pessimismo nacional em relação à saída da crise.
E no entanto o saldo político do Governo tem a seu favor um notável conjunto de medidas, tanto no ataque à crise orçamental como na concretização de uma série de corajosas reformas no âmbito da função pública (nomeadamente o desaparecimento dos múltiplos regimes especiais), da sustentabilidade da segurança social (convergência do sector público com o regime geral, entre outras medidas), da saúde (sobretudo na área dos medicamentos), do ensino (aumento do tempo escolar no ensino básico, ensino precoce do inglês, lançamento do "processo de Bolonha" no ensino superior, etc.), da justiça (diminuição das férias judiciais), da comunicação social (projectos de lei da nova entidade reguladora do sector e revisão da lei de imprensa) e ainda no campo político (onde sobressai a aprovação da limitação dos mandatos dos autarcas e o fim do regime de pensões adicionais pelo exercício de cargos políticos).
Até agora o foco da opinião pública esteve indubitavelmente concentrado nas questões financeiras e nas medidas relativas à função pública. Essas áreas vão naturalmente continuar a reclamar as atenções, sobretudo as primeiras, na perspectiva do próximo orçamento para 2006, que terá de implementar as opções necessárias para reduzir o défice para o nível previsto no programa de consolidação orçamental enviado para Bruxelas. Mas, se quer romper o círculo em que corre o risco de ficar acossado, o Governo tem de ampliar a agenda política, dando maior visibilidade a outras áreas do seu programa, como as reformas políticas, da justiça e da administração pública.
Começando pela administração pública, do que se trata é de a tornar mais eficiente e mais célere, menos exigente em procedimentos e em custos, mais amiga das empresas e das pessoas, mais transparente e responsável e mais resistente à corrupção que a ameaça em todos os níveis (a luta contra a corrupção deveria estar no topo das prioridades políticas). As medidas de simplificação administrativa já adoptadas (como a simbólica "empresa na hora") ou anunciadas para breve (documento único automóvel e cartão único do cidadão) são um bom começo para uma tarefa tão abrangente quanto imprescindível para a modernização do Estado e do país. A recente iniciativa relativa à avaliação dos serviços da administração central não pode arrastar-se; tem de ser recuperada a avaliação dos institutos públicos, que vem do Governo anterior.
Outra área prioritária é a justiça, que é um dos sectores mais resistentes à mudança (desde logo pela força dos respectivos grupos profissionais), onde são necessárias medidas resolutas para corrigir a sua lentidão e melhorar a sua eficiência e capacidade de resposta em todas as frentes.
No campo da reforma política, há duas áreas que não podem ser adiadas. A primeira tem a ver com a descentralização e desconcentração da administração territorial, bem como a racionalização da administração territorial do Estado. Há que atacar decididamente a macrocefalia e a centralização administrativa, harmonizar as circunscrições territoriais das inúmeras administrações desconcentradas, gerar mecanismos de coordenação da administração regional do Estado, transferir novas responsabilidades para os municípios.
Todavia, na esfera política em sentido estrito, é altura de desencadear a reforma porventura mais emblemática e mais estruturante, que é a reforma do sistema eleitoral, no sentido da criação de círculos de um só deputado (círculos uninominais) para a eleição de uma parte substancial dos deputados, sem prejuízo de manutenção de um sistema globalmente proporcional. Não se trata somente de gerar uma categoria de deputados mais próximos dos seus eleitores, eleitos segundo uma racionalidade mais "personalizada" e por isso mais responsáveis perante aqueles. Trata-se também de favorecer um novo método de escolha de candidatos, menos dependente das direcções nacionais e distritais dos partidos e mais conforme com os méritos dos potenciais candidatos.
É certo que no horizonte temporal próximo estão também as eleições locais e as eleições presidenciais (para além do referendo da despenalização do aborto, que o PS não pode abandonar), podendo haver a tentação para "evitar ondas" que pudessem afectar os resultados eleitorais. Essa tentação não deve prevalecer. O Governo e o PS ganharam as eleições na base de um compromisso de mudança, de reforma e de modernização do país. Quanto mais evidente for a sua convicção e determinação nessa direcção, melhores condições se criarão para encarar airosamente os escolhos eleitorais ou para superar qualquer eventual desaire eleitoral, como "efeito colateral" das difíceis medidas que tem vindo a tomar. Mas é também para isso que servem as maiorias absolutas. O juízo eleitoral que o Governo deve temer é somente o de aqui a quatro anos. Até lá tem todas as possibilidades de tirar partido das reformas que agora toma e reverter mais tarde a situação em seu favor.
Ai dos governos que, em circunstâncias adversas e com um programa de reformas exigente e susceptível de criar descontentamentos sectoriais, governarem em função das sondagens eleitorais de cada momento ou das perdas de popularidade transitórias. Dificilmente chegarão ao fim da viagem, e sem a missão cumprida.
(Público, terça-feira, 6 de Setembro de 2005)

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