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12 de novembro de 2005

A globalização da raiva 

por Ana Gomes


O terrorismo recruta jovens enraivecidos. Pobres ou não. Mas desesperados por se sentirem injustiçados, descriminados ou oprimidos. E a panóplia tecnológica da globalização fomenta a raiva, ao acentuar a diferença, a exclusão, a consciência do que se poderia ou deveria ter e não se tem, seja emprego, dignidade, direitos ou nação.
Em França os subúrbios estão incendiados por raiva acumulada em décadas de «apartheid» social e negligência governamental. A mesma em que borbulha o fundamentalismo dito islâmico (não é - não é isso o Islão, como não é cristão o terrorismo do IRA). Não custa imaginar que ele possa cavalgar a revolta dos jovens suburbanos.
É a mesma raiva que fornece recrutas de várias nacionalidades à Al Qaeda. Ao contrário da ilusão vendida por Bush e seguidores, não valia a pena esgravatar no Iraque de Saddam - eles já estavam entre nós. Na Europa e nos EUA se planearam o 11 de Setembro de 2001 e o 11 de Março de 2004. Jovens europeus levaram o terror a Londres este ano. O chamado mundo ocidental, não tendo querido (no caso da América de Bush) ou sabido (no caso da Europa) gerir equilibradamente a globalização, tem sido, de facto, a grande fábrica da raiva que alimenta terroristas. A Al Qaeda aproveita a dobrar: o desvio do Afeganistão para o Iraque permitiu-lhe manter a central em funcionamento e ampliar o campo de treino. Basta tratar do recrutamento, e organizar a exportação, com publicidade e entrega ao domicílio. O serviço, esse, é global.
Em França - onde todos, da direita à esquerda, há muito esbracejam sobre «mundialização» - não se vê determinação para a controlar, procedendo às transformações sociais, políticas e económicas impostas pela eliminação de fronteiras, das deslocalizações às ameaças terroristas. O Não à Constituição Europeia, em Maio, já traduzia a revolta dos franceses pelo mal-estar social, pela falta de dinamismo da economia, pelo desemprego, pelas inconsistência das políticas nacionais e europeias, pela incoerência e hipocrisia dos governantes. O modelo social europeu não falhou em França - pura e simplesmente não está a ser cumprido, porque não está a ser adaptado à dinâmica da globalização.
Em França e no resto da Europa continua a protelar-se a aplicação da Estratégia de Lisboa. A estratégia de adaptação à globalização, pondo o dinheiro na investigação e inovação, criando novo emprego para compensar o que se deslocaliza. Paris tem-se destacado a impedir o financiamento da Estratégia de Lisboa: nem deixa aumentar o orçamento da UE para 2007-2013, nem rever-lhe as prioridades (e obrigar à devolução do cheque britânico) fazendo finca-pé num lamentável acordo de 2002 sobre Política Agrícola Comum. A Chirac importa mais continuar a subsidiar agricultores há muito almofadados pela PAC, que apostar na qualificação e integração laboral e social de jovens de origem magrebina: aí tem a paga nos subúrbios incendiados.
Quem falha não é só Chirac - são também os outros dirigentes políticos europeus, de direita e de esquerda, que pactuam e se mostram incapazes de governar à escala global que hoje dita o modo de vida em Cebolais de Cima, Tampere, Tumbuctu ou Nova Iorque, tudo subordinando ao carrocel das sondagens e «sound bites» das contendas eleitorais. O Presidente da Comissão Europeia, que mais do que nunca devia ser forte e firme, também «oblige» - «no acordo de 2002 não se toca», sustentou no Parlamento Europeu ao propor um paliativo «fundo de amortização da globalização» (quem o financiará? ). E no entanto, nunca a França teve uma direcção política tão vulnerável, tão encostável à parede...
O mais grave é que a gripagem do motor francês tem consequências à escala global: Paris também procura impedir a UE de passar a actos as boas intenções sobre comércio e desenvolvimento globais. A posição negocial europeia, tolhida por Chirac, arrisca-se a determinar o falhanço do Doha Round, nas vésperas da reunião de Hong Kong. É o incêndio de todos os subúrbios por esse mundo fora que se prefigura. A Al Qaeda não descurará de aproveitar.

(publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 11.11.05)

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