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15 de dezembro de 2005

Os poderes dos Presidentes 

Por Vital Moreira

Quase 15 anos depois de J. J. Gomes Canotilho e eu próprio termos publicado "Os Poderes do Presidente da República", agora relançado no mercado, André Freire e A. Costa Pinto acabam de publicar o seu livro quase homónimo, "O Poder dos Presidentes".
Trata-se porém de dois estudos muito diferentes, embora complementares. O primeiro é de índole essencialmente jurídico-constitucional, destinado a analisar o que o Presidente da República pode fazer, ou não, com especial relevo no campo da política externa e da defesa. São duas as teses essenciais. Por um lado, o nosso sistema de governo tem uma matriz basicamente parlamentar - dada a responsabilidade política do Governo somente perante o Parlamento -, pelo que a usual designação de regime semipresidencial, que é corrente na nossa literatura de direito constitucional e de ciência política, está longe de lhe assentar bem. Por outro lado, porém, o Presidente tem certos poderes autónomos relevantes (de controlo e regulação do sistema) que não quadram com o modelo tradicional de sistema parlamentar, entre os quais se contam não somente o poder de veto legislativo e o poder de dissolução parlamentar, à margem da vontade do Governo (os chamados "poderes negativos" ou de controlo), mas também o poder de manifestação pública de ideias políticas e o poder de aconselhamento do Governo.
Na verdade, embora entre nós o principal "desvio" prático do modelo constitucional tivesse sido o que preconizava o reforço da componente presidencial do regime, mediante uma leitura ampliativa dos poderes presidenciais - isso tinha sido especialmente marcante no caso do "eanismo" (ou seja, as ideias e a prática do primeiro Presidente da República) -, também foi evidente, durante o período dos governos de Cavaco Silva, uma tentativa de esvaziar os poderes presidenciais de controlo, sobretudo na área da defesa e da política externa, onde eles são mais relevantes. Do que se tratava, portanto, era de afirmar um modelo de poderes presidenciais equilibrado, que salvaguardasse tanto a autonomia governamental na prossecução da sua política como os poderes próprios do Presidente da República enquanto garante do regular funcionamento das instituições e moderador do sistema de governo, ou seja, como "polícia, árbitro e bombeiro".
Já o livro de André Freire e de A. Costa Pinto é um estudo de ciência política e parte de pressupostos diferentes, aceitando sem discussão a impostação usual da noção de semipresidencialismo, como tertium genus entre o parlamentarismo e o presidencialismo. Como se sabe, aquela noção ficou-se a dever ao politólogo francês Maurice Duverger, para classificar um conjunto de países europeus (onde se contavam, por exemplo, a França e Portugal) que compartilha(va)m um sistema de governo caracterizado por um Presidente da República directamente eleito (como na generalidade dos regimes presidencialistas), dotado de legitimidade própria e munido de poderes relevantes, exorbitantes em relação aos poderes puramente formais ou cerimoniais dos Chefes de Estado nos regimes parlamentares tradicionais, e pela existência autónoma de um governo politicamente responsável perante o parlamento (como é próprio dos regimes parlamentares) e, em alguns casos, também perante o Presidente da República (sistemas dualistas).
Numa definição operacional relativamente simplificada em relação à de Duverger, e na esteira de alguma literatura estrangeira mais recente, os dois autores consideram regimes semipresidenciais todos aqueles em que o Presidente da República é eleito directamente pelos cidadãos, à maneira dos sistemas presidencialistas, independentemente dos seus poderes efectivos, e em que o governo, saído de eleições parlamentares, é responsável perante o parlamento, de cuja confiança política necessita. Nesta noção tão ampla, que se basta com o fenómeno "bi-representativo", cabem todos os países (e são cada vez mais...), em que, havendo eleição popular do Presidente, se mantém, porém, o governo responsável perante o parlamento, permitindo abarcar realidades tão diferentes como a Áustria, onde os poderes presidenciais são praticamente quase nulos, ou a Rússia, onde o Presidente manda quase tudo, reduzindo o governo a seu instrumento directo.
Depois de uma pequena história dos Presidentes da República em Portugal, durante a I República e o Estado Novo, os autores fazem uma comparação do sistema português com os demais regimes semipresidencialistas, nessa definição "ecuménica", demonstrado que o "semipresidencialismo" português vem quase no final da escala de dezenas de países, tendo em conta um conjunto de poderes constantes de uma grelha de análise comparativa, dos quais o nosso Presidente da República só dispõe de dois, designadamente o poder de veto e a dissolução parlamentar.
Analisando depois a participação eleitoral nas eleições presidenciais ao longo do tempo (desde 1976), em comparação com as eleições parlamentares, os mesmos autores chegam à conclusão de que as primeiras registam uma participação sensivelmente menor do que as segundas. Na sua tese, a menor participação popular nas eleições presidenciais permite concluir pela sua menor importância, o que consubstancia a sua qualificação como eleições de "segunda ordem", sendo de primeira ordem as eleições parlamentares, justamente por serem as eleições decisivas para a escolha do governo e para as opções políticas da governação, o que é congruente com o desenho do sistema.
Como seria de esperar, o sistema de governo pode conhecer variações quanto ao exercício efectivo dos poderes presidenciais, como se revela no que respeita ao veto político e à fiscalização preventiva da constitucionalidade por parte dos Presidentes da República, que se mostra mais frequente no segundo mandato presidencial, sendo a principal razão porventura o facto de já não poder haver um terceiro mandato, pelo que se acentuam as funções de controlo político sobre o governo. Essa maior filtragem presidencial da função legislativa constata-se tanto no caso de Mário Soares quanto no caso de Jorge Sampaio. Resta saber se pode ser erigida à categoria de "lei" do sistema.
Mesmo com as suas diferentes declinações nas mãos de cada ocupante de Belém, o nosso "semipresidencialismo" caracteriza-se essencialmente por uma baixa extensão e intensidade dos poderes presidenciais, pela separação entre o Presidente da República e o governo (o primeiro "preside" mas não governa) e pela autonomia do segundo em relação ao primeiro, que lhe não pode dar ordens nem fazer recomendações em sentido próprio, nem pode demiti-lo por motivo de desconfiança política. Por isso, em vez de enquadrar o nosso sistema de governo na família "semipresidencial", com toda a ambiguidade da expressão (que diminuiria se fosse reservada para os casos em que o Presidente compartilha da função governativa ou em que o governo depende também da sua confiança política), melhor fora designá-lo como "regime parlamentar com correctivo presidencial", nas palavras de um autor citado, fórmula, aliás, invocada também no outro livro sobre os poderes presidenciais, de 1991.
Por tudo isto, em vez de grandiosos projectos de intervenção presidencial, de todo descabidos no nosso regime constitucional, melhor seria que os candidatos presidenciais fossem esclarecendo como e com que critérios vão utilizar os instrumentos de que efectivamente dispõem, como o poder de veto, a dissolução parlamentar, o envio de mensagens à Assembleia da República, a recusa de indigitados para cargos políticos de nomeação presidencial, etc.
(Publico, Terça-feira, 13 de Dezembro de 2005)

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