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26 de janeiro de 2006

Vencedores e vencidos 

por Vital Moreira

Perante as eleições presidenciais de ontem, consumando a eleição de um candidato de direita pela primeira vez desde a instauração do regime democrático, as perguntas a responder são duas: o que vai fazer Cavaco Silva com a sua histórica vitória? O que vão fazer o PS e a esquerda em geral com a sua derrota?
Comecemos pelo óbvio. A vitória de Cavaco Silva, evidentemente inatacável sob o ponto de vista da sua legitimidade democrática, é uma vitória politicamente fraca. Primeiro, foi uma vitória à tangente, com a mais magra maioria absoluta de todos presidentes até agora (menos de 0,6 por cento). Segundo, foi uma vitória em queda acentuada, ficando a anos-luz das expectativas de vitória esmagadora do início (basta reler os bloggers e colunistas do campo cavaquista de há umas semanas), que assim saem frustradas. Dá a impressão de que com mais uns dias de campanha a vitória escaparia. Terceiro, foi uma vitória assente numa forte abstenção, a maior registada na primeira eleição de um presidente (só ultrapassada nas reeleições de Soares e de Sampaio, quando o desfecho da eleição não estava em causa). Para mais, tudo indica que os resultados se devem sobretudo à abstenção do eleitorado socialista...
Se a vitória do vencedor é fraca, a derrota de Mário Soares é forte, mais do que as mais pessimistas expectativas. Soares foi vítima de três factores que afectaram decisivamente o seu desempenho eleitoral. Primeiro, o seu arranque para a candidatura foi tardio, mercê da prolongada indefinição do PS sobre o seu candidato presidencial, e ainda por cima marcado pelo quiproquó com Manuel Alegre. Em segundo lugar, ele foi o bode expiatório do descontentamento de algumas camadas da população atingidas pela política de contenção orçamental do Governo do PS, designadamente os funcionários públicos em geral e certos grupos em especial (militares, polícias, juízes e magistrados, professores, etc.). Em terceiro lugar, e sobretudo, foi vítima do senso comum em vários planos: o senso comum de que um octogenário já não serve para o cargo presidencial; o senso comum de que a crise económica requer um Presidente com conhecimentos de economia; o senso comum de que em tempos de crise há vantagem num presidente mais intervencionista do que Soares provavelmente seria.
Correndo por fora e contra o seu próprio partido, Manuel Alegre obteve um score bem acima do que era lícito admitir no início. Não tendo servido para impedir a vitória de Cavaco Silva, ele conseguiu pelo menos ganhar o desafio ao PS e vingar a desfeita de ter sido preterido. Em certos momentos da candidatura, aliás, pareceu ser esse o principal objectivo. O seu inesperado sucesso ficou a dever-se a alguns factores bem explorados, como o descontentamento de uma parte do eleitorado socialista contra o Governo, o tradicional filão romântico da esquerda independente que já tinha dado frutos com Maria de Lurdes Pintasilgo, a subterrânea cultura antipartidária que prevalece em muitos sectores entre nós (e de que o PRD foi o principal beneficiário há 20 anos), e mesmo um certo elitismo conservador que foi atraído para o "patriotismo poético" de Alegre. Infelizmente, o que avultou foi o discurso de demarcação em relação aos partidos políticos e aos "aparelhos partidários" (a expressão é em si mesma um programa ideológico populista), o que no caso não deixa de ser pelo menos bizarro, provindo de alguém que pertence, como poucos, ao aparelho do PS (do qual é eterno deputado e dirigente) e que vive desde há décadas do exercício de cargos políticos.
Estas eleições deixam quatro questões em aberto. Que vai fazer Cavaco Silva com esta vitória? Como vai Sócrates lidar com esta derrota? Que vai fazer Alegre com o seu sucesso pessoal? Que danos vai causar na herança política de Soares este falhado retorno?
A vitória inesperadamente fraca de Cavaco Silva não lhe deixa grande autoridade política para o intervencionismo presidencial que ele e os seus apoiantes acalentavam. Se a política tivesse lógica, seria de esperar uma moderação dos propósitos de activismo presidencial do candidato eleito. Tal como Mário Soares no seu primeiro mandato (1986-1991), o mais indicado seria uma presidência contida, sem obstaculizar o Governo de Sócrates, esperando tirar proveito próprio do previsível sucesso deste na superação da crise económica e financeira, tanto mais que deixou difundir, pelos seus apoiantes, a ideia de que seria o melhor protagonista para uma parceria fecunda com o primeiro-ministro.
Acresce que, sucedendo ele a dois grandes Presidentes com os quais não pode ombrear em muitos aspectos - um Presidente maior do que o país (Mário Soares) e um dos Presidentes mais cultos e "aristocratas" (no verdadeiro sentido da noção) que já tivemos (Jorge Sampaio) -, tudo aconselharia o novo inquilino de Belém a dedicar-se a construir pacientemente uma imagem mais apropriada à eminência do cargo. Mas será Cavaco Silva capaz de resistir às suas próprias convicções e temperamento e às pressões dos seus apoiantes mais fogosos?
Quanto à derrota de Sócrates e do PS, há duas vertentes a considerar. Por um lado, é de crer que do seu ponto de vista foi preferível esta vitória fraca de Cavaco Silva à 1.ª volta do que uma 2.ª volta entre Cavaco e Alegre. Primeiro, porque, o resultado seria seguramente uma vitória muito menos apertada de Cavaco, reforçando o seu peso político; depois, porque para o PS e muitos votantes socialistas seria difícil superar o constrangimento de ter de apoiar o candidato que se apresentou contra o partido e ajudou à pesada derrota do seu candidato oficial. Do mal, o menos - pensarão. Isto sem falar nos justos receios do imprevisível "gaullismo de esquerda" que Alegre insinuou sem demasiados cuidados no seu errático discurso político.
O segundo problema de Sócrates tem que ver, porém, com a derrota da sua mal sucedida estratégia presidencial - primeiro, a indefinição e adiamento da escolha do candidato e, depois, a dificuldade em mobilizar o partido para o apoiar devidamente - e com a desfeita da derrota de Soares às mãos do enjeitado Alegre. A sua autoridade política no partido e no país sofre o primeiro golpe sério. A presença de Cavaco Silva em Belém constitui obviamente motivo de preocupação em relação à liberdade de acção do Governo e à sua própria estabilidade, caso a situação económica não melhore nos próximos tempos. E a incógnita sobre Alegre pode ser um motivo de inquietação quanto à unidade do partido e à estabilidade e solidez do grupo parlamentar. A declaração de Sócrates na noite de domingo, sobre a esperança na cooperação presidencial e sobre a não hostilização dos apoiantes de Alegre, é inteligente. Mas, como é óbvio, nem tudo depende dele.
Quanto a Alegre, o pior que poderia suceder seria ele pensar que dispõe de um milhão de seguidores para uma aventura política. É uma perigosa ilusão. Em todo o caso, a haver qualquer projecto de institucionalização de um novo movimento político, é impensável que Alegre o possa dinamizar mantendo-se como deputado e dirigente do PS. Para constituir um factor de perturbação da estabilidade do grupo parlamentar do PS, já basta a divisão e o ressentimento criado pela sua candidatura. Somar a isso a criação de um movimento "alegrista" ou de uma facção dentro do grupo parlamentar socialista seria lançar gasolina no fogo.
E Mário Soares? Para as grandes personagens, as ocasionais derrotas, mesmo as mais pesadas, são uma simples nota de rodapé numa grande biografia. A sua determinação quase quixotesca nesta derradeira luta política só pode impressionar, acrescentando mesmo uma aura de injustiça e ingratidão histórica face ao seu sacrifício pessoal. E se porventura Cavaco Silva confirmar a sua vocação de ingerência na área governativa, e Alegre não resistir a explorar dentro do PS a sua posição eleitoral, ainda veremos Soares a proclamar, com razão: eu não dizia?
(Público, 3ª feira, 24 de Janeiro de 2006)

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