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10 de abril de 2006

Angola em mudança (impressões deuma visita em setembro de 2003) 

Por Ana Gomes (texto base de um artigo publicado em Outubro de 2003 na revista VISÃO sob o mesmo título)

Angola está em acelerada mudança. Não via Luanda desde há onze anos (saí semanas antes das eleições) e fiquei agradavelmente surpreendida pelo que encontrei. Onde havia montanhas de lixo à altura de primeiros andares estão hoje praças ajardinadas, com bancos, estátuas e passeios limpos. No Kinaxixe, sobre o pedestal antes coroado por um tanque de guerra, está agora uma sóbria Rainha Ginga (sexta-feira ao sol-pôr sucedem-se casamentos a tirar fotografias). O «Espelho da Moda», antes de prateleiras vazias, oferece agora miríade de artigos de artesanato, incluindo louça de «design» angolano. Há hipermercados (longe vão os tempos em que era preciso planear cientificamente um jantar diplomático...), lojas de roupa modernas e apelativas, casas de móveis de bom gosto. Fui a excelentes restaurantes, bem decorados, com impecáveis empregados, música ao vivo e ementas cuidadas (e bacalhau de várias maneiras).
Claro que ainda há muitos prédios e recantos degradados, mas a cada passo vêem-se obras de recuperação e edifícios já restaurados (magnífica a reabilitação da Cidade Alta, onde estão a Presidência e ministérios). Claro que nos cruzamentos os carros são enxameados por miúdos e graúdos a vender de tudo (jornais, dicionários, telemóveis, ventoinhas... mas não senti a agressividade de alguns «arrumadores» lisboetas). Claro que a noite se enche de guardas-nocturnos armados de «kalachnikoves» - como abundam também em Jakarta e tantas outras capitais.
Luanda regorgita hoje com mais de 3 milhões de habitantes, mas entrou na normalidade dual (5a Avenida/Harleem) de qualquer metrópole por esse mundo fora - entre 1988 e 1992 parecera-me um descomunal bairro-de-lata, mesmo no betão que fizera o orgulho dos nossos patos-bravos. Há, evidentemente, gangrenas da guerra que persistem expostas: basta andar pelo bairro Sambizanga, penetrar no incrível mercado Roque Santeiro, escapar a atolar-se na lama negra e mal-cheirosa das águas que os moradores deitam às ruelas por não haver saneamento, ver a miséria das casas (mas há uma certa ordem, o «mercado» até «fecha» à 2a.feira para limpeza), sem evitar o policia no cruzamento que cobra «gasosa» (taxa ilegal) aos passantes. E maravilhar diante do angolano Padre Lino a explicar «comprámos um monte de lixo e no terreno fizemos esta creche e aquela escola para miúdos da rua» (e que conforto saber que foi o Ministério dirigido por Ferro Rodrigues que pôs esta extraordinária obra dos Salesianos no mapa da cooperação portuguesa).
Mesmo na imensa chaga que é o Sambizanga, sente-se que a mudança está em curso. E alicerça-se na frase que ouvi por todos os lados: «Chegou o tempo da reconstrução e do desenvolvimento, acabou o tempo da guerra e da fome». E esses lados incluem tanto o MPLA, como a UNITA, que estão a saber construir a convivência democrática e a fazer a pedagogia da tolerância e da reconciliação nacional, articulando-se no Governo (há onze anos, apesar de tudo...) e no Parlamento. Na tarde em que fui recebida pelo Secretário-Geral do MPLA, João Lourenço vinha da Comissão Constitucional que acabava de aprovar, por consenso, a nova bandeira angolana, tal como por consenso já havia acordado alterações à letra do hino nacional.
Na nova sede do gabinete presidencial da UNITA visitei Isaias Samakuva, recém-eleito Presidente. Com satisfação constatamos que, apesar de onze anos de espera e tantos mortos mais, estávamos a cumprir a profecia da despedida no nosso último almoço no «Rules», em Londres, de voltarmos a encontrar-nos numa Luanda em paz. Ele confirmou-me que a UNITA, em fase de reorganização e apostada em jogar o jogo democrático, preferia também que as eleições tivessem lugar em 2005. E deu-me uma visão das prioridades (e dificuldades) na reinserção social dos seus apoiantes e na re-interiorização da população deslocada em geral e, ainda, das prioridades de desenvolvimento que coincidia, no essencial, com o que eu ouvira no MPLA, em gabinetes ministeriais, na nossa embaixada, junto de ONG e nas percepções de velhos amigos angolanos e portugueses.
Recolhi uma demonstração prática desta convergência numa reunião no Ministério da Assistência e Reinserção Social, onde o Ministro João Baptista Kussumua se fez acompanhar dos Vice-Ministros Junior João (da UNITA) e Maria da Luz Magalhães. Explicaram como reconciliação implica repatriamento de nacionais refugiados nos países vizinhos, reassentamento de quatro milhões e meio de deslocados internos e reinserção social de milhares de militares (só da UNITA serão 85.000) e suas famílias. E como estes são os primeiros passos, decisivos, do desenvolvimento em paz. De todos ouvi um mesmo recado: a recuperação das infra estruturas, a qualificação do capital humano, a utilização do capital financeiro hipotecado por vários anos devido à guerra, serão feitos a um ritmo lento se assentarem só nos angolanos; ou mais rápido, se a comunidade internacional ajudar.
Fiquei com sensação de que a UNITA, passando por profunda reorganização uma vez que foi dissolvido o exército em que sempre se apoiou (e tanto MPLA como UNITA me confirmaram que a integração dos cerca de 5.000 oficiais nas FAAs não podia estar a correr melhor), vai precisar de tempo para construir uma estrutura civil que assegure a representação do partido por todo o país. Poderá por isso, numa primeira fase, privilegiar a intervenção através do Parlamento em Luanda.
Fiquei convencida de que o MPLA, e o Governo que domina, estão num processo de abertura que deve ser saudado e apoiado. Basta ver a febre de debates que perpassa na sociedade e que tem expressão através da televisão, rádio, na liberdade dos jornais. Um velho amigo angolano, há anos muito amargo com o MPLA, explicou-me porque lhe renascia o interesse: «Não perderam apenas o alibi da guerra; perderam a arrogância de quem achava que tinha a verdade toda e tudo lhes era devido e permitido». Mas também me disse que a evolução é muito mais lenta nos quadros provinciais. Um dirigente de uma ONG angolana resumiu: «Não são tão maus como os pintam, nem tão bons quanto os angolanos merecem e exigem».
O próximo Congresso do MPLA, em Dezembro, será um momento importante nesta evolução e pode reforçar a projecção internacional do partido e do país, por que tanto tem trabalhado Paulo Jorge, essa admirável e lendária figura da resistência e da política angolana, que tantas vezes fustigou Portugal por fraternal exigência, nunca por ser anti-português. Este mês reunido no Benin, o Comité Africa da Internacional Socialista deverá apreciar uma recomendação de passar o MPLA do estatuto actual de «membro consultivo» para «membro de pleno direito» da IS.
Sem dúvida, o MPLA mantém as suas estruturas partidárias pelo país, a par das estatais, e tem a mais poderosa organização capaz de consolidar a identidade nacional angolana (a Igreja católica também, mas talvez com menos peso) e melhorar a imagem de Angola no exterior. Mas esse processo vai sobretudo depender da interaçcão democrática entre os dois maiores partidos, MPLA e UNITA, e da capacidade de ambos respeitarem e envolverem os partidos mais pequenos e também deixarem pulsar a sociedade civil angolana. Todos e cada um dos angolanos, organizados politicamente e na sociedade civil, ou simplesmente através do voto universal, serão os agentes/actores centrais do seu próprio desenvolvimento. E Angola tem aqui mais um imenso capital a explorar, pois por mais pobres e iletrados que sejam, os angolanos são politicamente muito sofisticados e discernentes, com escola forçada em décadas de guerra.
A penalização política pela guerra e pela má governação tem de vir do próprio processo democrático e não do exterior. Ou seja, o importante é que as instituições funcionem cada vez melhor, que haja eleições reconhecidas e em condições de todas as partes respeitarem os resultados. Os membros da comunidade internacional podem dar parecer (e escolher apoiar e participar, ou não, no processo de mudança), mas não têm de determinar o caminho a percorrer. Não há uma só verdade, nem política, nem economicamente, como propagam o FMI ou Banco Mundial. Se a «conferencia de doadores» prevista para Bruxelas dentro de meses tardar ou ficar aquém das expectativas, Angola não vai cruzar os braços. E terá amigos a apoiar.
Portugal tem, evidentemente, de ser um deles. Só os portugueses são mestiços, sempre entre Portugal e Angola, entre o estrangeiro e o patrício, pelas fortes relações afectivas, nos aspectos positivos como negativos. O Primeiro-Ministro Durão Barroso, com o capital de conhecimento e sensibilidade que neste dossier lhe assiste, deverá ir a Angola em Outubro, numa visita que leva já quase um ano de preparação e tem de constituir um ponto alto nas relações Portugal-Angola: um ponto de partida para um relacionamento mais intenso, mais sério e mais estruturado em todos os campos.
As prioridades angolanas neste momento centram-se na reabilitação de infra-estruturas essenciais para o reassentamento populacional no interior - estradas, caminho de ferro, água e saneamento, escolas, postos de saúde e hospitais, habitação. Mas vários interlocutores sublinharam o papel que Portugal poderia assumir no relançamento da agricultura (os projectos de reinserção de deslocados incluindo a produção horto?frutícola, conduzidos com sucesso pela ONG portuguesa CIC na zona do Huambo, demonstram como rapidamente se pode eliminar a dependência alimentar). E todos destacaram o papel insubstituível de Portugal no ensino, incluindo o profissional. Significativa foi a advertência que ouvi a Fernando Pacheco, dirigente da prestigiada ONG angolana ADRA: «a guerra impediu a maioria dos angolanos de aprender a falar português; se vocês não fizerem nada rapidamente para organizar a alfabetização e o ensino por esse país fora, vai-se a lusofonia!».
Portugal tem vantagens comparativas na cooperação com Angola, seja pelo conhecimento acumulado do país e das pessoas, seja pela polivalência dos seus técnicos (médicos, enfermeiros, professores, engenheiros, regentes agrícolas, etc.), adaptáveis a trabalharem no interior, longe de Luanda. A organização competente da cooperação de Portugal com Angola deve incentivar uma cooperação de qualidade e apostar no combate ao compadrio e à corrupção, que precisa de ser punida de um lado e de outro (convém não esquecer que não há corrompido, sem corruptor). A presença empresarial já forte na banca, seguros e construção civil tem de ser estendida aos outros sectores e incluir a participação dos grandes grupos portugueses, por enquanto pouco presentes (acabou o tempo dos «comerciantes de contentor», ouvi repetidamente). A questão da dívida tem de ser resolvida (alguns empresários portugueses suspeitam que o acordo em negociação pelo Ministério das Finanças vai favorecer apenas a banca; contempla-se que parte da dívida seja convertida em kwanzas, a utilizar em Angola, pelas empresas credoras). No petróleo foi-me dito que as portas estão abertas, «quem tem unhas, toca guitarra» ? mas terá a GALP estratégia?
Esta visita, apesar de em curtos quatro dias confinados a Luanda, convenceu-me que a politica de Portugal para com Angola, desde sempre tão complexada e passional, tem de ousar ser agora clara e racional, sem perder a marca afectiva. Tanto na crítica fraterna, como no apoio às mudanças em curso. Tanto bilateralmente com Luanda, como nos fora a que Portugal tem acesso, em especial na União Europeia.
Do aproveitar desta oportunidade de paz e democracia que finalmente se vive em Angola não depende apenas a rentabilização dos fabulosos recursos do país, nem a melhoria das condições de vida do sacrificado e admirável povo angolano. Marcará o futuro de toda a Africa. E só pode resultar em progresso e projecção para Portugal.

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