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31 de agosto de 2006

A alavanca 

Por Vital Moreira

Na guerra do Líbano Israel não poupou meios para a destruição indiscriminada de vidas humanas e de infra-estruturas civis. O saldo destrutivo é impressionante, quaisquer que sejam os critérios de apreciação. Mais impressionante ainda, porém, foi a complacência e a retórica justificativa dos apoiantes de Israel nesta guerra. Em nome da Civilização aceitaram-se a justificaram-se actos de barbárie.
Por maior legitimidade que Israel tivesse para desencadear a guerra contra o Hezbollah, por causa da incursão deste no seu território e a captura de alguns soldados seus (mas quantos activistas e dirigentes do Hezbollah não capturou Israel anteriormente?), a verdade é que não existe nenhuma razão de "legítima defesa" que justifique a violação das mais elementares leis da guerra.
O direito à guerra não dispensa o cumprimento do direito da guerra. Na guerra não vale tudo. Os fins não justificam os meios. Ora, as acções bélicas de Israel na guerra do Líbano ? nomeadamente a destruição de bairros residenciais e de aldeias inteiras, de pontes e estradas, de portos e aeroportos civis, de depósitos de combustível portuários, de ambulâncias e hospitais, de um posto de observadores da ONU, sem falar no massacre ?involuntário? de Cana ? preenchem sem grande dificuldade a noção de crimes de guerra, pelos quais Israel seria provavelmente acusado perante o Tribunal Penal Internacional, se porventura não se tivesse oposto desde o início à criação deste tribunal.
Nem se diga, como se argumentou, que os alvos eram as infra-estruturas do Hezbollah e que os mortos e feridos não passam de "vítimas colaterais" do ataque a essas infra-estruturas. Os exemplos apontados, bem como a enorme desproporção entre as perdas do Hezbollah e o total de mortos (mais de 1000), mostram que nenhuma relação directa existe entre as duas coisas. Antes pelo contrário, os ataques a objectivos civis fizeram parte de uma inequívoca orientação e estratégia militar. Na guerra que lançou contra o Líbano, Israel aplicou a mesma política que desde há anos prossegue contra os palestinianos: flagelar as populações e destruir infra-estruturas, para forçar as autoridades políticas (num caso a Autoridade Palestiniana, noutro caso o governo libanês) a isolar e combater os movimentos radicais. Tal doutrina é conhecida em Israel como a estratégia da "alavanca", uma metáfora para a ideia de que a intimidação das populações e das autoridades políticas serve de pressão na luta contra os grupos que combatem Israel. Na verdade, trata-se de um eufemismo para designar uma forma descarada de terrorismo de Estado.
Uma das características da guerra ideológica propósito da guerra do Líbano foi o sue extremado maniqueísmo. O mais torto ?argumento? dos apoiantes da guerra do Líbano contra os seus críticos ? descontado o argumento terrorista do "anti-semitismo", que não merece consideração, de tão estúpido que é --, foi o de que havia que optar entre Telavive e o Hezbollah, entre a democracia e o terrorismo. "Se não estás connosco, estás com eles" --, uma versão ainda mais maniqueísta do que a de Bush, quando, na véspera da invasão do Iraque, clamava que quem não estava com Washington, estava com "eles", querendo dizer Saddam Hussein!
O argumento, em si mesmo, não passa de uma óbvia mistificação retórica, destinada apenas a legitimar, sem censura, os erros e excessos belicosos de Israel nesta guerra. É evidente que a maior parte dos críticos ocidentais de Israel nesta guerra, ? entre os quais muitos judeus que subscreveram artigos e tomadas de posição contra a guerra ou contra a sua condução ? não podem ser acusados de qualquer simpatia ou complacência para com o Hezbollah (mesmo que não o considerem um "grupo terrorista") ou os seus mentores (ou seja, o Irão). Se há algo que muitos desses intelectuais abominam são os regimes e os movimentos políticos fundamentalistas de base religiosa, como o regime iraniano e o Hezbollah. Não é seguramente por amor aos seus inimigos que criticam Israel nesta ocorrência.
Outro dos fáceis argumentos pró-israelitas consistiu em defender que, sendo Israel uma democracia, com pluralismo político e liberdade de expressão (embora sendo um Estado étnico e confessional), então não pode haver escolha numa guerra com Estados e movimentos islâmicos de tipo autoritário e fundamentalista. Trata-se evidentemente de uma outra declinação do argumento maniqueísta. Todavia, as opções e a conduta bélica de Israel, se censuráveis em si mesmas, não deixam de o ser só pelo facto da natureza democrática do Estado judaico, nem esta cancela a condenação das mesmas. Por um lado, as democracias não estão ao abrigo de se envolverem em guerras injustas, nem "sujas", mesmo com aplauso geral dos seus cidadãos. Basta lembrar a guerra de França contra ao movimento de independência argelina ou a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque, que chegou a contar com o apoio maciço dos norte-americanos. Aliás, se bastasse o apoio popular para legitimar as guerras, mesmo as mais injustificadas, o mundo teria padecido de um número ainda maior de guerras do que as que ocorreram.
Por outro lado, no caso das democracias, as guerras "sujas" e os crimes de guerra são ainda mais intoleráveis do que no caso dos regimes autoritários, justamente porque põem em causa a dignidade e a legitimidade da própria democracia. É por isso que Guantánamo é mais inadmissível do que as prisões políticas castristas (que estão na natureza do regime); é por isso que os métodos repressivos de Israel nos territórios ocupados e a destruição punitiva do Líbano são mais censuráveis do que a violência dos movimentos extremistas islâmicos (que se autolegitimam em nome da luta contra a ocupação). Em definitivo, mesmo na guerra (ou sobretudo nela) as democracias devem manter alguma superioridade moral; quando usam os mesmos métodos que os utilizados pelas forças que qualificam como terroristas, então descem ao nível destes. Ora foi essa superioridade moral que Israel desbaratou nesta guerra.
A guerra terminou "empatada", com sabor de derrota para Israel, apesar do acordo para a criação de uma força-tampão internacional no sul do Líbano, que era um dos objectivos estratégicos de Telavive. Mas não conseguiu esmagar o Hezbollah, nem sequer obteve a libertação dos soldados israelitas capturados, que foram o pretexto da guerra, e que agora terá de negociar com o inimigo, seguramente a troco da libertação de membros do movimento chiita detidos por Israel. Acima de tudo, a estratégia da "alavanca" foi um tiro pela culatra. O resultado não foi mais bem sucedido no Líbano do que nos territórios ocupados. Na Palestina, levou à radicalização popular contra o ocupante e à vitória eleitoral do Hamas, em vez da moderada Fatah; no Líbano, fez aumentar a popularidade do Hezbollah e a solidariedade com ele, tanto no País como no mundo árabe. Em vez de isolar e aniquilar o adversário, como pretendia, o ataque israelita só lhe conferiu maior legitimidade e autoridade política.
De resto, a guerra, no Líbano veio "justificar" e aumentar as razões de queixa e de ódio antijudaico entre as massas árabes, inclusive no Líbano, sentimentos que ampliam os apoios do Hezbollah e dos movimentos radicais islâmicos. Lá para trás, foi a prolongada ocupação israelita do Líbano que criou o Hezbollah; agora, com o novo ataque destrutivo ao mesmo Líbano, Israel entregou àquele o protagonismo de todos os agravos árabes contra o Estado judaico, incluindo na questão palestiniana. Essa foi a grande vitória do Hezbollah (e indirectamente do Irão). O que não é propriamente uma boa notícia, nem para Israel, nem para os palestinianos, nem para o mundo.
(Público, 3ª feira, 22 de Agosto de 2006)

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