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16 de novembro de 2006

O AUTISMO DA FRETILIN 

por Ana Gomes

Passei mais uma semana em Timor Leste, de 29 de Outubro a 4 de Novembro, numa delegação do PE. Volto com a impressão reforçada de que, como já escrevi aqui em Junho "esta crise, decerto estimulada e aproveitada por actores externos, é sobretudo da responsabilidade dos governantes timorenses que cometeram sérios erros."

A FRETILIN, condutora da luta heroica do povo timorense contra os ocupantes, não conseguiu na governação libertar-se dos reflexos totalitários e autistas de muitos dos seus dirigentes, que, até por virem do exílio, mais se deviam ter esforçado por ouvir e entender os anseios do seu povo. De que serve fazer planos para 20 anos, se se ignoram as necessidades imediatas de uma populacao com 60% de jovens com menos de 18 anos, dos quais 80% sem ocupacao (e por isso hoje Dili vive no sobressalto dos gangues a solta)? De que serve estruturar o Estado e assegurar-lhe receitas, se se ignora olimpicamente que entretanto o povo, que esse Estado deve servir, está a viver muito pior do que no tempo da ocupação indonésia?

A FRETILIN não percebeu que, face às ciclópicas tarefas de construção do Estado, o essencial seria pôr a sua dupla legitimidade - a histórica e a da maioria nas urnas em 2001 - ao serviço da unidade nacional, da criação de consensos e entendimentos de regime. Pelo contrario - foi com desprezo que, desde a independência, o seu Governo tratou o Parlamento e os partidos da oposição. Desrespeitando-os, claro, tambem os desresponsabilizou.

Auto-suficiência e sectarismo anti-democráticos foram cavando mais distanciamento entre o partido maioritário e o povo. E por isso se empolou a divisão lorosae/loromunu, em que a FRETILIN tem pesadas responsabilidades, ao subestimar as queixas contra a discriminação dentro das FDTL e ao respaldar o comportamento do ex-Ministro do Interior que pôs a Policia a rivalizar com as FDTL. Aos primeiros incidentes com os "peticionários", decisões politicas no tempo certo podiam ter evitado a escalada; o governo escolheu a confrontação e despediu um terço dos efectivos militares: demonstrou que não lhe faltava só bom senso, mas a básica 'ligação às massas.' Entretanto a divisao artificial gerou uma dinâmica de terror e vingança que leva ainda milhares de cidadãos de Dili a preferirem dormir em campos de deslocados, sob a protecção da ONU ou da Igreja. Hoje, tragicamente, a FRETILIN mal ousa levantar a cabeça nos distritos do Oeste, onde vive a grande maioria da população timorense.

O enfrentamento armado entre a Policia e as Forcas Armadas timorenses em Maio pôs tão fora de controlo a situaçãoo que foi preciso chamar forças australianas. A FRETILIN não pode continuar a escamotear a responsabilidade principal no enfrentamento e na presença australiana. Por isso é intolerável que insista na tecla da conspiração. Mas afinal não foi o PM Alkatiri quem propôs aos outros orgãos de soberania a entrada das forças australianas, com as portuguesas e outras para compor o ramalhete? Não nos venham com a desculpa de, como as forcas australianas já estavam ao largo, preparadas para intervir (ostensivamente, segundo a imprensa e declarações oficiais de Camberra), era inevitável essa entrada: «Elas entrariam na mesma, mais valia assim convida-las a entrar...» ouve-se a altos responsáveis da FRETILIN. Para quem sustenta a teoria da conspiração, é caso para perguntar porque em 1975 não fez a FRETILIN o mesmo favor à Indonésia?...

A verdade é que, apesar da gravidade existencial desta crise, em que está em causa não apenas a soberania nacional mas, de facto, a nação timorense, a FRETILIN não meteu ainda a mão na consciência. Não reconheceu os erros, nem abandonou a demonização dos adversários e as teorias da conspiração. O que é alarmante, porque é a FRETILIN quem continua a governar. Os ministros vêm do anterior governo, o actual PM não dá (compreensivelmente) um passo sem consultar/corresponsabilizar o seu predecessor. Ramos Horta oferece sobretudo um estilo novo, mais dialogante, menos arrogante e menos distanciado do povo. Mas realmente, quem continua a governar Timor Leste é Mari Alkatiri e a FRETILIN por ele liderada.

Por isso é ainda mais deprimente a esquizofrenia do discurso publico da FRETILIN, como resulta do comunicado do seu Comitá Central de 29 de Outubro. Que o Presidente Xanana Gusmão entretanto denunciou na carta aberta intitulada «A Teoria das Conspirações», desmascarando a estratégia de desinformação, manipulação e vitimização que o partido do governo tem adoptado para fugir às responsabilidades que tem na crise.

Xanana, ele sim, continuou a viver em comunhão intensa como o seu «amado povo sofredor». Ele é decisivo para cortar o nó górdio que, de momento, asfixia Timor-Leste. E asfixia a própria FRETILIN.


(publicado no "COURRIER INTERNACIONAL" em 10.11.06)

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