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16 de fevereiro de 2008

Conservadorismo de esquerda 

Por Vital Moreira

Nas críticas da esquerda tradicional ao actual Governo do PS há uma reiterada convergência na acusação de "esvaziamento" ou de "destruição" do Estado social, bem como de "convergência com as políticas de direita" a esse respeito. Todavia, independentemente do juízo político que se tenha sobre a orientação e o desempenho governativo nesta área - que, a meu ver, peca ao invés por alguma inconsistência doutrinária e timidez na execução -, a verdade é que as referidas acusações não são de modo nenhum suportadas pelos factos. Nem esvaziamento do Estado social, nem convergência com os partidos de direita.

É certo que o Governo eliminou logo no início do seu mandato vários regimes especiais de segurança social e de saúde, de que eram beneficiários certos grupos privilegiados no sector público. Mas parece evidente que tais medidas só podem ser aplaudidas sob um ponto de vista de esquerda, que não pode defender privilégios nem regimes especiais injustificados. É também inegável que houve encerramento de muitas escolas, de alguns blocos de partos e vários serviços de pseudo-urgências com escassa procura, ou de má qualidade ou simplesmente redundantes. Todavia, em vez do proclamado desastre, o que se verificou em geral foi a melhoria da cobertura nacional das respectivas redes e da qualidade dos serviços em causa, como se pretendia. Também é verdade, por último, que as reformas em curso invocam valores de rigor e eficiência operacional e financeira, tradicionalmente associados à direita. Contudo, devia ser hoje indiscutível que a boa gestão dos recursos públicos deve ser uma preocupação sobretudo da esquerda.

Voltando ao falso argumento da "destruição do Estado social", o que se verifica é justamente o contrário, ou seja, a sua recuperação e ampliação. No caso da segurança e da protecção social, basta referir o reforço do RIS, a valorização das pensões mais baixas, o novo complemento para pensionistas pobres, os novos apoios à natalidade e às famílias numerosas, o seguro de desemprego no sector público, o extenso programa de novos equipamentos sociais. No caso da educação, não podem ficar sem destaque a tendencial universalização do ensino pré-escolar, o alargamento do horário do ensino básico, o programa de recuperação das escolas do ensino secundário, o programa de "novas oportunidades", o aumento da procura do ensino secundário e do ensino superior, o novo programa de empréstimos no ensino superior, etc. No caso da saúde, importa lembrar os programas de recuperação da listas de espera cirúrgicas, a racionalização e qualificação da rede de maternidades e da rede de urgências, as novas redes de cuidados primários e de cuidados continuados, os novos programas na área da medicina dentária e da vacina contra o cancro do colo do útero, etc.

Portanto, em vez de "esvaziamento", o que tem havido é um claro reforço do investimento político e financeiro na realização dos direitos sociais nessas três áreas-chave, em boa parte através de ganhos de eficiência e de melhor utilização dos recursos disponíveis. Além disso, o mais importante foi inverter a ideia de irrecuperável insustentabilidade e decadência dos respectivos serviços públicos, que levavam cada vez mais pessoas a procurar no sector privado protecção social, educação e cuidados de saúde. Por conseguinte, em vez de "destruição do Estado social", o que tem havido é uma inegável aposta em melhorar a sua capacidade de resposta.

Não tem maior fundamento a ideia de que as referidas reformas não se distinguem das propostas da direita. O que se passou no debate da reforma da segurança social e o que se sabe das ideias do PSD e do CDS, bem como dos círculos ideológicos da direita, sobre o ensino e a saúde não deixam nenhuma margem para dúvidas sobre o fosso doutrinário e político entre o que está a ser feito e o que seria feito se fosse a direita a governar.

Recorde-se que na reforma da segurança social, enquanto o PS fez vingar a reafirmação e as condições de sustentação do modelo de segurança social pública, universal e geral, a direita insistiu num modelo de capitalização individual das pensões, o qual, além de abandonar qualquer ideia de solidariedade social e intergeracional, necessitava de um gigantesco endividamento público para suportar os encargos das pensões nas próximas décadas, dada a cessação das contribuições para o fundo geral da segurança social. No caso da educação e da saúde, os projectos da direita não podem ser mais claros. Como se exprimiu enfaticamente o líder do PSD, trata-se de "desmantelar o Estado" - com o Estado social à cabeça, bem entendido - ou, nas palavras de Manuela Ferreira Leite, de "afastar o Estado" da saúde e da educação. Mesmo que se proteste que pode haver garantia dos direitos sociais sem passar pela sua prestação pública - o que é verdadeiro, em abstracto -, a verdade é que não pode haver grande ilusões de que nas actuais circunstâncias nacionais a privatização dos serviços públicos de segurança social, de educação e de saúde, transformando o Estado em simples pagador da sua prestação privada a quem não tivesse meios para os pagar, produziria uma inaceitável segmentação social, entre os serviços "de primeira" para quem pode pagar e os serviços "de segunda" (ou "terceira") para quem depende da subvenção estatal.

Por conseguinte, enganam-se deliberadamente os que não querem ver que a alternativa à política de modernização e racionalização dos serviços sociais públicos não consiste em insistir no modelo tradicional (e caminhar para o seu inevitável colapso a médio prazo), como quer a esquerda conservadora, mas sim em seguir as receitas da direita, suprimindo a responsabilidade colectiva por serviços públicos universais e substituindo-a, quando muito, pela garantia supletiva de "serviços mínimos" para quem não possa pagar a sua prestação privada. A opção (de esquerda) devia ser óbvia.

(Público, terça-feira, 12 de Fevereiro de 2008)

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