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27 de março de 2008

"Luta de classes" no sector público 

Por Vital Moreira

A conflitualidade social dos últimos anos reduz-se praticamente ao sector público administrativo, envolvendo os funcionários públicos ou sectores especiais (como agora os professores) na defesa das suas regalias ou privilégios contra as reformas em curso. Contudo, no sector público a "luta de classes" trava-se entre os empregados públicos e o próprio Estado, ou seja, entre interesses de grupo e o povo em geral, composto pelos destinatários dos serviços públicos e pelos contribuintes, que suportam os seus custos. Daí a indiferença ou, mesmo, a hostilidade que os protestos do sector público encontram entre os demais trabalhadores e a população em geral.

Os funcionários públicos gozavam de muitos privilégios face aos trabalhadores do sector privado, desde uma maior segurança no emprego até um sistema de aposentação e de pensões muito mais favorável, desde um menor horário de trabalho até um sistema de saúde privativo (a ADSE), desde remunerações em geral mais elevadas até uma generosa abertura à acumulação com funções privadas, etc. Dentro do sector público havia ainda vários regimes especiais que conferiam consideráveis vantagens adicionais, nomeadamente em matéria de cuidados de saúde e de segurança social, como era o caso da justiça, da saúde, das forças armadas, das forças de segurança, da carreira diplomática. Caso especial ainda era o ensino básico e secundário, onde vigorava uma carreira profissional "plana", sem escalões, e onde em princípio toda a gente poderia chegar ao topo da mesma e à correspondente remuneração (aliás comparativamente elevada).

Conhece-se o "ataque" que o actual Governo moveu a esta situação, em nome da igualdade de condições, da eficiência e qualidade do sector público e da disciplina financeira. Foi o fim, ou drástica redução, dos regimes especiais (porém com algumas lamentáveis excepções, como o regime específico de aposentação das magistraturas e da carreira diplomática, que nada justifica). Foi a progressiva convergência do regime público de aposentação e de pensões com o sector privado. Foi a aprovação do novo regime de emprego público, aproximando-o do regime de trabalho no sector privado. Foi o novo estatuto dos professores do ensino público, segmentando verticalmente a carreira em duas categorias, a que se junta agora o novo regime de avaliação de desempenho, do qual passa a depender a progressão na carreira e a respectiva remuneração.

Trata-se de uma revolução no sector público, que visa melhorar a qualidade dos serviços, premiar o mérito e punir a incompetência, criar uma cultura de avaliação e de responsabilização e, por último, conter a despesa com pessoal, reduzindo-a aos níveis médios da UE e da OCDE. De facto, até 2005 o peso das despesas de pessoal não cessava de crescer, sem nenhuma correspondência na melhoria do desempenho dos serviços públicos. Compreende-se bem que os interessados não se conformem com tais mudanças, que se consubstanciam em perdas reais ou novas exigências profissionais para uma boa parte deles. Mas uma coisa é compreender os motivos de protesto, outra coisa é dar-lhes razão nesse protesto. As situações de privilégio nunca merecem aplauso.

Numa democracia representativa, a interpretação e a prossecução do interesse geral cabe aos órgãos democraticamente eleitos. Não estamos num "Estado sindical", em que coubesse aos sindicatos um direito de veto sobre a legislação ou a governação. Claro que não podem descartar-se os procedimentos da democracia participativa, que devem ser meticulosamente observados; mas no fim do dia quem tem competência para decidir é o Parlamento e o Governo. Evidentemente, os sindicatos gozam de todo o direito de protesto através de manifestações e greves, que constituem um legítimo poder de pressão sobre os decisores políticos, nomeadamente pela ameaça de punição eleitoral futura; mas no final o poder político mantém toda a liberdade e toda a responsabilidade de decisão, arrostando se for caso disso com uma eventual perda de apoio em futuras eleições. É o Governo, e não os sindicatos, que vai a votos e que responde pelas suas políticas.

Os protestos profissionais do sector público, por mais impressionantes que sejam numericamente, não têm grandes virtualidades para mobilizar o apoio da generalidade da população. Por exemplo, o presente protesto profissional dos professores, apesar do apoio oportunista de toda a oposição partidária e de boa parte dos media, não conseguiu de modo algum transformar-se num verdadeiro movimento social transversal. A leitura que a generalidade dos cidadãos faz nestes casos é que se trata de uma luta de interesses particulares contra o interesse público. Bem podem, por exemplo, os professores tentar invocar em apoio dos seus protestos a "defesa da escola pública". A verdade é que a defesa da escola pública nada tem a ver com a defesa dos interesses privativos dos professores e que, pelo contrário, a escola pública só pode ficar a ganhar com as mudanças em curso, incluindo maior rigor e exigência na selecção, avaliação e progressão profissional dos professores.

De resto, as reformas no sector público, quando claramente dirigidas a melhorar os serviços e a reduzir o seu custo orçamental, tendem a obter apoio popular, mesmo perante os protestos do seu pessoal. Por isso, o risco de punição eleitoral por causa dos protestos profissionais é quase sempre baixo, visto que a perda de apoio nos sectores "lesados" poderá ser compensado, ou até mais do que compensado, pelo apoio da opinião pública em geral, que vê com bons olhos o ataque aos interesses corporativos.

As reformas do sector público que promovem a qualidade e a eficiência suscitam resistências, mas compensam politicamente. Aliás, mal seria para a democracia, se assim não fosse.

(Público, 3ª feira, 18 de Março de 2008)

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