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30 de julho de 2008

Carências artificiais 

Por Vital Moreira

Parece provado que o SNS padece de escassez de médicos em diversas áreas, quer por défice na sua produção desde há muito tempo, quer por efeito da recente migração para o sector privado. Mas se o primeiro factor não tem solução a curto prazo, já o segundo não tem de ser aceite passivamente sem medidas activas de contenção.

Antes de mais, há que desconfiar da dimensão da escassez, tal como é apresentada. Os rácios de médicos no SNS são comparativamente razoáveis, porém com níveis de produtividade e de eficiência em muitos casos bem abaixo dos melhores exemplos estrangeiros, e até nacionais. A recente demonstração de que os crónicos atrasos nos serviços de oftalmologia do SNS afinal podem ser supridos com a "prata da casa", mediante adequadas medidas organizatórias e remuneratórias, revela que a história da escassez de médicos, embora real, é propositadamente exagerada em alguns casos, nem sempre sem segundas intenções.

Quanto ao real défice de médicos, estamos a pagar há vários anos a malvada contingentação das vagas nos cursos de Medicina nos anos 80 e 90, que ministros e universidades irresponsavelmente conceberam e executaram. Apesar da correcção iniciada há uma década, com a criação de duas novas faculdades e a progressiva ampliação do "numerus clausus", que vem até hoje, as vagas continuam a ser comprovadamente insuficientes para as futuras necessidades do sector, tanto mais que se mantêm longos períodos de formação pós-graduação. Neste ponto, portanto, só resta continuar a apostar na importação de médicos - o que desde há muito sucede com os médicos espanhóis -, um bem que todavia não abunda em muitos lados.

Por último, não há nenhuma razão para facilitar a saída de médicos para o sector privado. Cabendo ao SNS a responsabilidade da formação médica, é perfeitamente justificável não somente a exclusividade com horário prolongado durante o internato - até para não obnubilar, logo no início da carreira, a necessária cultura de separação de interesses entre o público e o privado (mesmo que à custa de algum aumento de remuneração) -, mas também a imposição de um período razoável de vinculação ao sector público após a conclusão do internato, como compensação da formação adquirida e dos respectivos encargos. Não é aceitável que o SNS forneça gratuitamente médicos especialistas ao sector privado, sem nenhuma contrapartida dos beneficiários, ou seja, os médicos e as empresas privadas.

Apesar da evidência funesta da contingentação artificial dos cursos médicos e afins, há quem continue a defendê-la -, aliás, sempre os mesmos. O presidente da Ordem dos Médicos acha suficiente o actual número de vagas - o que os dados existentes não confirmam - e opõe-se ao seu aumento, para não pôr em causa o futuro emprego dos médicos. Mais radical é o bastonário da Ordem dos Dentistas, que invoca um suposto excesso de profissionais para propor mesmo a redução das actuais vagas, alinhando assim com a generalidade dos demais responsáveis pelas organizações profissionais.

É natural (sem por isso ser aceitável) a tentação das profissões organizadas para restringirem o acesso às mesmas e para levantarem barreiras à entrada, seja a pretexto de garantir a qualidade dos serviços profissionais, seja para assegurar o emprego a todos. Podendo fazê-lo, ninguém abdica de limitar a oferta, para desse modo ter procura garantida e remuneração mais elevada, pois onde a oferta é rarefeita, os preços necessariamente sobem. Não é por acaso que em Portugal, apesar do menor poder de compra comparado, os preços dos serviços de saúde privados, a começar nas consultas, são mais elevados do que em vários outros países mais ricos. A explicação está principalmente na escassez da oferta e na míngua de concorrência.

Todavia, a contingentação do acesso às profissões médicas não gera somente escassez de profissionais e preços mais elevados, que condicionam a gestão financeira dos serviços de saúde públicos e reduzem a procura de cuidados de saúde privados. Está em causa também a liberdade individual de escolha de profissão, que é um direito fundamental constitucionalmente garantido e que não deveria ser restringido por razões alheias à capacidade e à opção dos interessados.

Até se pode admitir (e a Constituição nem sequer proíbe) que o Estado não queira financiar mais alunos de Medicina do que os previsivelmente necessários, de acordo com estudos de prospectiva credíveis, tanto mais que esses cursos são os mais caros e o Estado suporta quase inteiramente os respectivos custos, dada a exiguidade das propinas. Todavia, mesmo que assuma essa opção - o que, de resto, não tem sucedido noutros cursos -, nada autoriza o Estado a vedar o acesso a esses cursos a quem tenha condições para o fazer e esteja disposto a suportar os respectivos custos, seja em universidades públicas (desde que tal opção exista), seja em universidades privadas.

Não se compreende a espécie de tabu, ou simples preconceito, que existe entre nós contra a admissão de cursos privados de Medicina, caso único no panorama português do ensino superior. É certo que há alguns anos uma comissão "ad hoc" reprovou todas as candidaturas então existentes, por alegada falta de qualidade. No entanto, independentemente de saber se não foi utilizada uma grelha demasiado exigente, que teria chumbado qualquer outro curso privado em qualquer área, não é de excluir a possibilidade de agora poder haver candidaturas mais consistentes.

Não há nenhuma razão para pensar que não existe uma única instituição privada em condições de criar e sustentar um curso decente de Medicina, sem perder, antes pelo contrário, na comparação com os cursos médicos que muitos jovens portugueses hoje pagam no estrangeiro, desde a Espanha e a República Checa até ultimamente à República Dominicana, como foi recentemente noticiado!

(Publico, 3ª-feira, 15 de Julho de 2008)

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