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31 de julho de 2008

A fortuna da V República 

Por Vital Moreira

Faz hoje 50 anos iniciava-se a preparação da Constituição da V República francesa, que viria a ser promulgada a 4 de Outubro desse ano de 1958. Uma Constituição com meio século é sempre um fenómeno digno de registo, sobretudo em França, onde a longevidade constitucional não era norma. Além disso, a Constituição de 1958 tornou-se um caso de sucesso político.

Nomeado chefe do Governo em Junho de 1958, o general De Gaulle não tardou a pôr termo à instável IV República (saída do pós-guerra, com base na Constituição de 1946), que se esgotara em menos de uma dúzia de anos. A nova Constituição, elaborada sob sua directa supervisão, seria aprovada mediante referendo popular directo em Setembro desse mesmo ano.

Eleito como primeiro Presidente da República da nova era constitucional por um colégio eleitoral alargado, tal como previsto na versão originária da Constituição, o mesmo De Gaulle fará modificar a Constituição logo em 1962, de novo por via de referendo (aliás, sem base constitucional), para estabelecer a eleição presidencial por sufrágio directo. A Constituição de 1958 alcançava assim a sua maturidade, sobrevivendo sem problemas à saída do seu inspirador (demissão de De Gaulle em 1969) e à eleição do primeiro Presidente socialista (Mitterrand, 1981), cujo partido sempre combatera a "Constituição gaullista".

No que respeita à organização do poder político, as principais características da Constituição da V República são a eleição directa e o papel proeminente do chefe do Estado e o reforço da posição do governo perante o Parlamento. Um terceiro traço político identificador da V República, embora sem expressão constitucional, é o sistema eleitoral maioritário a duas voltas, que modelou o sistema partidário e promoveu a bipolarização entre a esquerda e a direita política.

Claramente influenciada pela Constituição alemã de Weimar (1919), no que respeita ao compromisso entre o regime parlamentar e uma posição forte do Presidente da República, dotado de legitimidade eleitoral directa, a Constituição de 1958 assumiu expressamente uma lógica dualista a nível do "poder executivo", conferindo ao Presidente não somente um papel de arbitragem institucional, à maneira de um "quarto poder" moderador, mas também de intervenção na função governativa, incluindo a condução da política externa e da política de defesa. Ressalvados os breves períodos de "coabitação" entre maioria parlamentar e maioria presidencial de sinal político diferente, o Presidente da República é o verdadeiro chefe da maioria governamental e o orientador do poder executivo, sendo o primeiro-ministro apenas uma espécie de "oficial às ordens", funcionando como interface e como almofada entre o Presidente e o Parlamento.

Foi na base do sistema francês que se constituiu a noção do chamado "semipresidencialismo". Mas na sua versão francesa, e fora dos excepcionais períodos de "coabitação", o semipresidencialismo é uma forma de hiperpresidencialismo, em que o Presidente tem todos os poderes do Presidente dos Estados Unidos - ou seja, a chefia do poder executivo, directamente ou por interposto primeiro-ministro -, mas sem a separação de poderes típica do genuíno presidencialismo, pois o Presidente francês tem o poder discricionário de dissolução parlamentar e não está sujeito a impugnação parlamentar, como sucede no presidencialismo tradicional, sendo o Presidente praticamente irresponsável, incluindo na esfera penal. Para cúmulo, durante muito tempo o mandato presidencial era de sete anos e não havia limite de mandatos.

Apesar do seu exotismo originário no panorama das democracias parlamentares europeias, o modelo da V República veio a ter uma fortuna que inicialmente poucos poderiam augurar. Primeiro, na modelação constitucional de muitos países da África francófona, cuja independência ocorre justamente no inícío da V República; depois, em Portugal, em 1976, e por via da Constituição portuguesa, na formatação constitucional dos países africanos lusófonos, após a sua transição democrática no inícío dos anos 90; e finalmente, nos anos 90, em vários países do Leste europeu, incluindo a Polónia e a Rússia, que adoptaram também esse mix institucional de dupla representatividade eleitoral e de dupla responsabilidade governamental.

Tendo sido alterada muitas vezes, quase sempre de forma pontual, a Constituição da V República acaba de ser mais uma vez revista, desta feita de forma extensa, dando execução a um compromisso político do presidente Sarkozy. Sem muitas mudanças substanciais, a revisão constitucional veio, porém, introduzir alguma moderação no excessivo "governamentalismo" e "presidencialismo" constitucional. Desta perspectiva são de assinalar, entre outras, a limitação dos mandatos presidenciais (dois mandatos), o maior controlo dos poderes presidenciais excepcionais, a redução do recurso governamental à moção de confiança para fazer passar leis sem votação parlamentar, a moderação do comando governamental da agenda parlamentar, o reconhecimento de alguns direitos parlamentares aos partidos da minoria.

Apesar da oposição sectária do Partido Socialista francês, o balanço global da revisão traduz-se numa atenuação relativa dos superpoderes do governo e do Presidente face ao Parlamento, reduzindo a ostensiva marca antiparlamentar que caracterizava o guallismo constitucional originário. Se se acrescentarem outras mudanças, como a criação de um "provedor dos direitos" e a admissão da "excepção de inconstitucionalidade" contra qualquer norma numa causa judicial (fiscalização concreta da constitucionalidade), então teremos de concluir que se verificou um razoável ganho em termos de democracia parlamentar e de Estado de direito em França.

Ao longo deste meio século não foram poucos os que preconizaram uma nova Constituição e uma VI República. A nova revisão constitucional nos 50 anos da Constituição de 1958 mostra que a V República está bem viva e se recomenda.

(Publico, 3ª-feira, 29 de Juhlo de 2008)

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