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31 de dezembro de 2008

Autonomia contenciosa 

Por Vital Moreira

Embora constitucionalmente inatacável, a confirmação parlamentar do estatuto regional dos Açores contra o veto presidencial suscita algumas sérias preocupações, tendo em conta o que está em causa e as suas implicações.

Antes de mais, o veto político do Presidente da República tem toda a justificação. De facto, uma das normas em causa - a que se refere à audição dos órgãos de governo regional em caso de dissolução da assembleia regional - não é politicamente sustentável (além de ser inconstitucional, por contrariar norma constitucional específica). Não é minimamente razoável que se imponha ao Presidente da República, quem quer que ele seja, a audição prévia da própria assembleia que ele pretende dissolver, o que, para além da demora e do condicionamento da decisão presidencial, sujeitá-lo-ia a ser politicamente censurado, ou até publicamente desconsiderado, pela mesma assembleia.

Por isso, não têm razão aqueles que defendem que Cavaco Silva deveria ter suscitado a questão da constitucionalidade dessa norma, em vez de usar o veto político por causa dela. Mesmo em relação a normas manifestamente inconstitucionais (como é o caso) não é obrigatório suscitar a questão da constitucionalidade, se o Presidente entender que elas são antes de mais politicamente censuráveis, e quiser fazer questão disso. Até porque, se tiver de vir a promulgar o diploma apesar do seu veto político (como vai ser o caso), sempre ficará com a possibilidade de requerer a declaração de inconstitucionalidade das mesmas normas, acto contínuo.

Deu lugar a especulações diversas a busca de uma explicação para o capricho do PS na aprovação do estatuto regional contra o veto presidencial, apesar da evidência das razões do mesmo e do melindre político da questão em causa. Mas a explicação afigura-se ser bem singela. Tudo indica que o "braço-de-ferro" com Cavaco Silva tem a ver simplesmente com um mal-avisado compromisso de solidariedade política com o PS regional em relação ao estatuto, cujo cumprimento o líder regional dos Açores fez questão de cobrar. O que é grave, aliás, é a conclusão de que, tal como desde sempre se verificou no caso do PSD nacional em relação à Madeira, parece haver um "pacto de sujeição" dos partidos nacionais em relação aos seus braços regionais, quando no poder, como se o apoio regional fosse essencial para as lideranças nacionais.

De resto, neste caso do estatuto regional dos Açores, todos os partidos - e não somente PS - se revelaram reféns das suas filiais (?) regionais, pois, apesar dos protestos de concordância com o veto presidencial, no final o diploma foi reconfirmado também pelo BE, pelo PCP e pelo CDS. O próprio PSD, que acusou o PS de "guerrilha institucional" contra o Presidente, acabou por se limitar à abstenção, tendo mesmo proibido os seus deputados discordantes de votarem contra (embora tendo autorizado os dos Açores a votarem a favor!). Como exercício de hipocrisia política não poderia imaginar-se melhor!

Para além da mossa que poderá criar nas relações entre Belém e a maioria parlamentar, este episódio é especialmente preocupante sob o ponto de vista da contenciosidade institucional gerada pelo entendimento radical da autonomia regional, em consequência da falta de estabilidade e de consolidação política e constitucional da mesma. A cada revisão constitucional e a cada revisão estatutária, a questão do alargamento da autonomia regional é sempre reaberta, à luz de uma implícita estratégia de "autonomia evolutiva", sem fim definido (a expressão deve-se a Mota Amaral, antigo chefe do governo regional dos Açores).

Enquanto esta estratégia de "autonomia sempre maior" se mantiver, a questão regional corre o risco de continuar a ser instrumentalizada como arma de arremesso ou de chantagem política. Pelos vistos, nenhum partido resiste a essa tentação, mesmo correndo o risco de envenenar o necessário clima de cooperação institucional a nível da República e de suscitar na opinião pública nacional uma justificada perplexidade sobre o sentido e os limites de expansão da autonomia regional.

(Público, sábado, 20 de Dezembro de 2008)

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