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15 de janeiro de 2009

Somália: quem são afinal os piratas? 

por Ana Gomes

A Somália é um país sem Estado, sem ordem e sem rumo desde 1991. Está à mercê do caos sangrento das lutas pelo poder entre os clãs que compõem a sociedade somali: luta-se pelo controlo de uma cidade portuária, luta-se pelo controlo de uma posição estrategicamente útil, luta-se por armas, comida, para sobreviver, por tudo e por nada.
Há 17 anos. Neste caos, claro, prosperaram movimentos radicais islâmicos com as promessas costumeiras de paz, ordem e autoridade. E a Al Qaeda - sempre rápida a explorar os vácuos de poder por esse mundo fora - instalou-se.
Foi justamente a pretexto de combater o "perigo islamista" que a Administração Bush instigou e apoiou (diplomática, financeira e militarmente) a invasão armada etíope da Somália, em Julho de 2006. A coberto do pretexto da defesa contra os movimentos secessionistas etíopes que se refugiavam na Somália, a invasão etíope tinha como objectivo declarado apoiar um fictício Governo de Transição somali, perpetuamente paralisado por disputas internas. Nessa altura, o Primeiro Ministro da Etiópia Meles Zenawi, um ditador tão brutal como espertalhão, declarou que "não estamos a tentar impor um governo á Somália, nem temos intenções de nos metermos nas questões internas deste país."
Já passaram dois anos: a presença militar etíope continua e provocou um recrudescimento dos combates e um fortalecimento dos grupos fundamentalistas islâmicos. A situação humanitária nunca foi pior, a capital Mogadíscio está em ruínas e, neste momento, um terço da população (mais de 3 milhões de pessoas) depende da ajuda alimentar internacional. E é neste contexto que a pirataria ao largo da Somália dispara.
Os somalis não nascem piratas - tornam-se piratas. Aconteceu o inevitável: a ausência de ordem - em mar e em terra; a proliferação de armas (apesar de um embargo de armas da ONU que ninguém leva a sério); o desespero das comunidades costeiras somalis perante a rapacidade das frotas de pesca estrangeiras nas suas águas (incluindo europeias! a quem convém a ausência de autoridade para saquear os recursos piscatórios locais); a corrupção generalizada; a miséria: tudo contribui para que a pirataria no Golfo de Áden prospere, com ataques cada vez mais audaciosos.
E o que faz a comunidade internacional? A União Europeia, a NATO, a Rússia e em breve até a China desmultiplicam-se em operações navais de combate à pirataria, respaldadas por resoluções robustas do Conselho de Segurança da ONU. Por outras palavras - depois de se assistir passivamente à implosão da Somália, combatem-se agora apenas os sintomas do cancro e com paliativos insuficientes. Depois dos EUA terem encorajado e apoiado a Etiópia na sua invasão sangrenta, ineficaz e contraproducente, com a Europa a assobiar para o lado, agora damo-nos conta que o preço da negligência criminosa a que foi votada a Somália é a pirataria a uma escala nunca antes vista.
É preciso esclarecer uma coisa. Não me oponho a operações navais de combate à pirataria, especialmente quando solidamente ancoradas em resoluções da ONU. Por isso apoio as Resoluções 1816, 1846 e 1851 de 2008, que dão luz verde a estas operações - incluindo a missão naval europeia "Atalanta", lançada dia 8 de Dezembro.
Mas estas não são as primeiras resoluções adoptadas pelo Conselho de Segurança sobre a Somália. Dezenas de outras, como a 1814 (2008), apelam há anos a que os Estados Membros da ONU apoiem, com dinheiro e material, a missão militar da União Africana na Somália (AMISOM) - que nunca conseguiu lá posicionar sequer metade dos 8.000 soldados previstos. Lamentavelmente, estas outras resoluções não foram implementadas com o mesmo zelo pelos países que agora não poupam esforços para combater a pirataria.
Não há mistério: erradicar a pirataria nas costas da Somália implica assegurar a governação e estabilização do país. Para isso é preciso começar por equipar e financiar a AMISOM como deve ser, ou até viabilizar o envio de uma missão militar da ONU e fazer sair as tropas etíopes invasoras. E é preciso, sobretudo, desenvolver uma verdadeira estratégia de reconstrução e reconciliação nacional. Para isso é preciso visão estratégica e vontade política para ajudar os somalis - as verdadeiras vítimas desta triste história, que morrem ao milhares de fome, guerra e de décadas de negligência por parte da comunidade internacional. A mesma comunidade internacional que acorre agora a proteger petroleiros, navios mercantes e de veraneio e frotas pesqueiras, mas que acha que é um desperdício investir alguns milhões de euros na estabilização militar da Somália e num processo de paz que assegure a restauração da lei e da ordem naquele país.

(Jornal de Leiria, 8 de Janeiro de 2009)

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