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1 de maio de 2011

À conta do orçamento 

Por Vital Moreira

No setor da Educação o Estado viveu durante décadas capturado por duas forças poderosas, os sindicatos dos professores e o lobby do ensino privado. Maria de Lurdes Rodrigues libertou-o da dependência dos primeiros; falta fazer o mesmo em relação ao segundo. Apesar dos apoios e das cumplicidades de que gozam, os colégios privados financiados pelo Estado não podem ganhar a guerra pela manutenção dos privilégios de que dispõem à mesa do orçamento.

Comece-se por três observações que não podem ser seriamente contestadas. Primeiro, nos termos da Constituição o serviço público de ensino é uma incumbência pública, devendo o Estado (e demais coletividades territoriais) assegurar uma rede de ensino que cubra as necessidades de toda a população. Segundo, está entre nós garantida a liberdade de criação de escolas privadas paralelas à rede pública, para satisfazer a procura exterior ao ensino público. Terceiro, sendo o ensino obrigatório até ao ensino secundário, ninguém é porém obrigado a frequentar a escola pública, podendo preferir pagar uma escola privada, por razões de maior proximidade ou melhores condições ou por razões religiosas ou ideológicas.

A escola pública é uma obrigação do Estado, a escola privada uma liberdade privada. Todos têm direito a uma escola pública acessível e de qualidade; todos têm a faculdade de preferir uma escola privada, querendo e podendo. Sendo um serviço público universal e gratuito (ou quase gratuito), a escola pública é uma responsabilidade financeira de todos, ninguém podendo eximir-se à sua quota-parte (tal como sucede com outros serviços públicos semelhantes, como o serviço público de saúde ou os serviços públicos culturais, etc.); e também ninguém pode reivindicar o pagamento público de serviços privados, em vez de utilizar os serviços públicos disponíveis (como, aliás, sucede nos outros serviços públicos referidos). O serviço público de ensino perderia a sua natureza universal e tornar-se-ia financeiramente insustentável, se admitisse um "opting out" do sistema público, com direito a financiamento público dos estabelecimentos privados.

Compreensivelmente, quando a oferta pública é insuficiente ou deficiente, o Estado deve "externalizar" o serviço público em falta, contratualizando a sua prestação por estabelecimentos privados, mediante adequado financiamento público. É o que se faz desde há muito tempo (tal como na saúde e noutras áreas). Se o Estado tem uma obrigação constitucional de prestar um serviço universal, mas não o faz, incorrendo numa omissão inconstitucional, deve entretanto contratualizar a prestação do serviço em falta com operadores privados, mediante o devido pagamento.

Sucede, porém, que mercê da pressão dos interessados e da cedência de sucessivos Governos, os "contratos de associação" foram beneficiando muitas escolas privadas cujos serviços estavam longe de ser necessários ao serviço público de ensino (por haver oferta bastante nos estabelecimentos públicos), ou se tornaram posteriormente redundantes por efeito da expansão da rede pública ou da sua capacidade. Algumas situações são verdadeiramente escandalosas, como sucede em muitas cidades, onde vários colégios privados conseguem ser financiados pelo Estado apesar da boa rede de escolas públicas envolvente.

Em segundo lugar, verifica-se que o pagamento das escolas privadas "associadas" era francamente "generoso", tendo-se tornado um encargo demasiado oneroso para o Estado, sobretudo num período de constrangimento financeiro e de austeridade orçamental. Não há nenhuma razão para que o Estado, que tem a responsabilidade pela boa prestação do ensino público e que tem em curso um ambicioso programa de requalificação da rede escolar pública, desvie milhões de euros para pagar a escolas privadas um serviço que a rede pública bem pode assegurar sem acréscimos significativos de encargos. Trata-se de puro desperdício de dinheiro público.

Por isso, há que morigerar por um lado o valor das contrapartidas públicas e, por outro lado, rever todos os casos existentes, conservando somente os contratos de associação que correspondem a genuínas carências do sistema público e fazendo cessar todas os demais. O que não pode permanecer é o atual parasitismo das escolas privadas penduradas no financiamento público.

Compreende-se o embaraço dos liberais domésticos nesta questão. Por um lado, preconizando eles a "desestatização" e o "pluralismo" do ensino, aplaudem naturalmente esta privatização parcial do serviço público de ensino. Por outro lado, porém, não podem defender ostensivamente a dependência das escolas privadas do financiamento público, ou seja, dos impostos. Optando pelo setor privado, tentam, porém, contornar o financiamento público em nome de um "level playing field" na concorrência privada com o ensino público, fornecido "a custo zero".

Mas o argumento não tem pés para andar. Primeiro, se levassem até ao fim a lógica liberal contra o Estado, deveriam defender a privatização integral do ensino e o seu pagamento pelos utentes, admitindo, quando muito, a subsidiação pública dos que não podem pagar os encargos do ensino. Segundo, entre nós, como em muitos outros países, o ensino é um serviço público que não está no mercado (não sendo por acaso que não integra o "mercado interno" no âmbito da UE). Por isso não faz sentido invocar igualdade de concorrência entre escolas públicas e privadas, tal como não o faz no caso dos hospitais públicos e privados, teatros públicos e privados, bibliotecas públicas e privadas, polícia pública e polícias privadas, etc.

Há sem dúvida espaço para um mercado privado no ensino, desde que fora do perímetro do serviço público de ensino e sem ser à custa deste. Numa "economia social de mercado" nem tudo está sujeito ao império do mercado.

[Público, terça-feira, 1 de Fevereiro de 2011]

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