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1 de maio de 2011

Duopólio territorial? 

Por Vital Moreira

Na sua moção ao próximo congresso do PS, José Sócrates defende agora que "não estão reunidas as condições para a realização do referendo sobre a regionalização nesta legislatura." E que um novo revés significaria a "definitiva derrota da ideia".

Ressalvando algum regionalista mais sanguíneo, ninguém de bom senso poderá contrariar estas duas afirmações. É evidente que nas atuais circunstâncias um novo referendo estaria condenado a novo insucesso, com o definitivo enterro da regionalização. Todavia, não basta constatar a falta das necessárias condições. O que se exige a um partido que aposte seriamente na descentralização regional do continente é estabelecer as condições que faltam. Ora isso não está ser feito, nem se anuncia intenção de o fazer.

Há muito tempo que estão identificadas essas condições, desde uma ideia clara sobre a divisão territorial, as atribuições e o financiamento das futuras autarquias regionais até à prévia eliminação definitiva dos distritos e da divisão distrital. Há muito por fazer em qualquer destas frentes.

Quanto ao primeiro ponto, importa registar o amplo consenso estabelecido sobre as atuais cinco regiões "NUTS II", a saber, as regiões Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve, que constituem a base territorial das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). Todavia, pouco ou nada se avançou na definição concreta das atribuições regionais e, ponto crucial, sobre o seu financiamento. Ora, sem ideias claras nesta matéria, não é possível "vender" politicamente a regionalização.

Quanto à eliminação da divisão distrital, há que reconhecer que, na legislatura passada, foram dados passos importantes no alinhamento da administração desconcentrada do Estado com a divisão regional das NUTS II, suprimindo nomeadamente muitas circunscrições administrativas de base distrital ou pluridistrital. Todavia, subsistem importantes áreas que obedecem ainda à divisão distrital, como a segurança social, a segurança pública e a proteção civil, a administração rodoviária, para não falar da subsistência da própria divisão distrital e dos governadores civis distritais, cuja eliminação carece, aliás, de revisão constitucional.

Mais importante que tudo o mais, subsiste a divisão distrital para efeitos eleitorais e de organização territorial dos partidos políticos. De facto, enquanto se mantiver a base distrital da representação política, que constitui em si mesma um arcaísmo, torna-se impensável legitimar a nova divisão regional. É essencial que os círculos eleitorais tenham uma base regional ou sub-regional, sejam as regiões elas mesmas, sejam as "comunidades intermunicipais" (NUTS III), ou agregações destas. É evidente, porém, que uma tal mudança - que não precisa de nenhuma mudança constitucional - só pode ser alcançada mediante uma profunda revisão da lei eleitoral, que não poderá deixar de incluir a sensível questão da redução do número de deputados na Assembleia da República. Excluir em absoluto tal diminuição, ainda que moderada, é fechar a porta a qualquer revisão da lei eleitoral, que carece do consenso com o PSD.

Tão preocupante como o défice de condições decisivas para a descentralização regional é a consolidação das "áreas metropolitanas" de Lisboa e do Porto como verdadeiras autarquias regionais (mesmo sem terem o nome). Mas é isso que se projeta com a anunciada intenção de avançar para a eleição direta dos respetivos órgãos (como consta da referida moção do secretário-geral do PS).

Trata-se de uma mudança política e conceptual cujo significado não pode ser ignorado. Atualmente as áreas metropolitanas são estruturas intermunicipais, sendo os seus órgãos derivados dos órgãos próprios dos municípios integrantes. Não passam, portanto, de entidades intermunicipais de regime especial. Com a eleição direta dos seus órgãos, passaríamos a ter um verdadeiro autogoverno, elemento decisivo das autarquias territoriais. Dotadas de atribuições próprias e de legitimidade eleitoral direta, as áreas metropolitanas assumiriam a natureza de verdadeiras e próprias autarquias regionais, ou seja, uma expressão de regionalização (parcial) do país.

Não é difícil antecipar as consequências de um tal desenvolvimento. Em primeiro lugar, convertidas as regiões metropolitanas de Lisboa e do Porto em autarquias regionais, ficaria posta em causa a atual divisão penta-regional (as cinco regiões de planeamento), pois não se vê como aquelas poderiam encaixar nas segundas, num esquema de quatro níveis de administração territorial autárquica (freguesias, municípios, áreas metropolitanas e regiões). Em segundo lugar, com a efetiva regionalização autárquica das áreas metropolitanas, onde se situa grande parte da população e da atividade económica do país, bem como a maior parte das "forças vivas" (media, universidades, grupos de interesse), desapareceria praticamente o impulso político para a regionalização do restante território continental. Satisfeitos os interesses administrativos de Lisboa e do Porto, o mais provável seria a consolidação desse "duopólio regional".

Em vez de avançar por essa regionalização parcial enviesada (aliás, de duvidosa constitucionalidade), o PS faria bem em aderir à ideia das "regiões-piloto", recentemente relançada pelo PSD para a revisão constitucional em curso. Primeiro, esse conceito permitira testar a regionalização no terreno antes do necessário referendo, o que poderia afastar definitivamente os medos e as dúvidas sobre as suas vantagens. Segundo, uma dessas regiões-piloto (além do caso natural do Algarve) poderia bem ser a de Lisboa e Vale do Tejo, até porque sempre estarão aí situadas as forças de oposição à regionalização.

Passados 35 anos sobre a sua previsão constitucional e dependente de um referendo, a regionalização só pode vingar pela prova efetiva das suas virtualidades.

[Público, terça-feira, 1 de Março de 2011]

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