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1 de maio de 2011

O poder moderador 

Por Vital Moreira

Depois da verdadeira "declaração de guerra" ao Governo do PS que foi o seu discurso de tomada de posse, abrindo de facto o terreno para a crise política que se declarou poucas semanas depois, o Presidente da República volta a "carregar nas tintas" na declaração com que anunciou ao país a dissolução a Assembleia da República e a convocação de eleições antecipadas.

Trata-se de uma peça inusual. Quando a antecipação de eleições é desencadeada pela apresentação da demissão pelo próprio Governo, como é o caso, o Presidente da República deve limitar-se a constatar, sendo caso disso, que não existe possibilidade de formação de um novo governo no quadro parlamentar existente. Contudo, Cavaco Silva achou necessário expor a sua leitura sobre as origens da crise política e sobre a situação do país, num registo de onde ressuma uma evidente condenação do Governo do PS, o que não pode deixar de ser negativamente avaliado, quando se trata justamente do ato de abertura de um período eleitoral, em que o Presidente da República deve pautar-se por uma estrita imparcialidade política.

Para começar, Cavaco Silva abstém-se de mencionar a verdadeira causa da crise política, limitando-se a referir a "incapacidade de diálogo entre o Governo e as oposições". Nem uma palavra sobre a rejeição do "programa de estabilidade e convergência" apresentado pelo Governo - que é agora ainda mais importante nos termos do novo quadro de disciplina orçamental da UE -, por iniciativa concertada de todas as oposições. É evidente que ninguém na oposição era obrigado a concordar com os termos do PEC, apesar de as suas medidas principais terem merecido o apoio e mesmo o elogio das instituições europeias como via necessária para a consolidação orçamental entre nós. Mas a sua rejeição liminar pelo PSD, com recusa de qualquer negociação (apesar de insistentemente proposta pelo Governo) e sem a apresentação de qualquer alternativa (como se o PEC não fosse obrigatório), revelou total falta de sentido de responsabilidade. Não é curial ignorar que essa foi a única razão da demissão do primeiro-ministro, por evidente falta de condições políticas para continuar, demissão que, aliás, Cavaco Silva levou uma semana a aceitar, sem qualquer justificação para a demora.

A omissão presidencial é tanto mais surpreendente quanto se trata de uma crise política sem paralelo no atual quadro constitucional, ou seja, desde 1976. Pela primeira vez, a direita parlamentar une-se à esquerda radical numa "coligação negativa" para derrubar um governo minoritário do PS, numa espécie de moção de censura atípica, com base em propostas de rejeição apresentadas separadamente mas votadas e aprovadas reciprocamente. Até agora poucos encaravam aquela hipótese como verosímil.

Na sua declaração oficial, Cavaco Silva sublinha que vivemos "uma crise económica e financeira sem precedentes", sem, aliás, esclarecer o período de referência temporal, que tanto pode ser o da atual era democrática como o de toda a história do país! O que o Presidente se esquece mais uma vez de dizer - já o tinha feito no discurso de tomada de posse - é que a crise económica e financeira por que passamos desde 2008 não é um exclusivo nacional e teve a sua origem numa crise económica e financeira global, essa sim sem precedentes nos últimos 80 anos. Não é aceitável apresentar as nossas dificuldades como fatalidade nossa e como exclusiva responsabilidade do Governo da hora. Este pode ser responsabilizado pela forma como respondeu ou deixou de responder à crise, mas não pela crise em si mesma, que era inevitável por quem quer que estivesse no governo.

Já quando refere, mais uma vez em traços negros, a atual "crise social", traduzida principalmente nos números do desemprego (ainda assim menos graves do que os de outros países), Cavaco Silva abstém-se de fazer comparações com o passado, em especial com 1983-85, quando a crise social foi bastante mais grave, apesar de uma crise económica menos profunda e menos duradoura, justamente por então não existirem os mecanismos de proteção social que hoje há - em geral criados entretanto por governos socialistas -, como, por exemplo, o rendimento social mínimo, o complemento solidário para idosos pobres, os novos instrumentos de luta contra a pobreza, etc. Tendo optado por referir os efeitos nefastos da crise económica, não teria ficado mal ao Presidente mencionar as "almofadas" que as instituições do Estado social oferecem.

É evidente que, como qualquer pessoa, Cavaco Silva tem direito aos seus preconceitos políticas e aos seus ressentimentos pessoais e ninguém lhe levará a mal que deixe entender as suas animosidades e as suas preferências políticas --, aliás conhecidas. Mas nas suas declarações e opiniões oficiais, o Presidente da República deve buscar o máximo de objetividade na análise das situações e um módico de imparcialidade no juízo acerca das mesmas. No nosso sistema político, o Presidente da República, apesar dos poderes e das responsabilidades constitucionais que tem, não é politicamente responsável pelos seus atos ou omissões, muito menos pelas suas declarações ou opiniões, só respondendo perante o "tribunal" da opinião pública.

Por isso, só uma assumida norma de equilíbrio, contenção e "self-restraint" é que pode resguardar o Presidente da República de suscetivismos reativos ou de excessos emocionais nos seus juízos políticos. Por definição, o "poder moderador" tem de primar pela moderação. O mote da "magistratura ativa" que Cavaco Silva escolheu para este seu segundo mandato não pode subverter o perfil presidencial que a letra da Constituição e a prática constitucional de décadas consolidaram. Cavaco Silva devia escolher outros meios para se destacar na nossa história constitucional.

(Publico, terça-feira, 5 de Abril de 2011]

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